Um cenário de incertezas e desafios da reforma tributária

A reforma tributária brasileira promete simplificar e modernizar o sistema fiscal, mas também traz à tona uma série de desafios que podem desestabilizar setores vitais da economia, escreve Marcela Guizo
A Esplanada dos Ministérios,
A Esplanada dos Ministérios,
A Esplanada dos Ministérios, em Brasília – Foto via Agência Brasil

Por Marcela Guizo

Em face da iminente implementação da reforma tributária, conforme estabelecido pela Emenda Constitucional n. 132, de 20 de dezembro de 2023, que introduziu alterações no sistema tributário nacional, especificamente no que tange à tributação incidente sobre o consumo, novas obrigações surgem para empresas e entes federativos. A criação de novos tributos (e consequentemente extinção dos atuais), implicará na substituição do ISS, ICMS, PIS, COFINS e IPI pelo Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), de competência compartilhada entre Estados-Membros, Distrito Federal e Municípios; pela Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), de competência federal; e pela Imposto Seletivo (IS), igualmente de competência federal.

A efetiva implementação da reforma dependerá, contudo, da aprovação de leis complementares que detalhem o novo sistema. Tais projetos deverão ser submetidos pelo Poder Executivo ao Congresso Nacional para aprovação, sendo que seus primeiros efeitos práticos serão percebidos a partir de 2026. O período de transição entre o regime tributário atual se findará somente em 2032, durante o qual as regras vigentes serão gradualmente substituídas. Portanto, até 2026 vigorará plenamente o sistema tributário atual que, a partir de então, será gradativamente substituído pelo novo regime.

Ao que temos acompanhado, a reforma tributária apesar de seu objetivo central de simplificar o sistema fiscal e promover maior eficiência, tem suscitado preocupações quanto à possibilidade de desestabilizar setores econômicos cruciais, gerando efeitos colaterais indesejados, como o aumento de custos operacionais, dificuldades de adaptação e impactos negativos sobre a geração de empregos. Em recente entrevista concedida à CNN Brasil, Lina Santin, tributarista e pesquisadora do NEF/FGV, abordou pontos críticos da implementação da reforma e destacou os desafios que determinados setores poderão enfrentar.

A criação do Imposto sobre Valor Agregado (IVA), inspirado em modelos adotados em outros países, é um dos elementos centrais da proposta de reforma. Contudo, apesar do sucesso desse sistema em diversas economias, a adaptação ao contexto brasileiro pode revelar-se complexa. Isso se deve ao fato de que o Projeto de Lei Complementar (PLP), responsável por regulamentar a aplicação da reforma, tende a afetar os setores econômicos de forma mais profunda do que as discussões iniciais indicavam. O impacto transcende as alíquotas e o modelo de arrecadação, exigindo uma revisão completa dos processos fiscais e contábeis das empresas.

Essa transformação demandará uma modernização abrangente dos sistemas tecnológicos, bem como a adequação das obrigações acessórias e, em alguns casos, uma reestruturação das práticas contábeis. Empresas de todos os portes, desde grandes corporações até pequenos negócios, enfrentarão desafios significativos nesse processo. Além disso, há o risco de atrasos na implementação dos sistemas operacionais necessários para o êxito da reforma. A mudança na forma de cumprimento das obrigações acessórias, exigirá não apenas atualizações tecnológicas, mas também o desenvolvimento e capacitação de uma mão de obra qualificada para operar essas novas ferramentas.

Outro ponto levantado por Lina Santin refere-se ao imposto seletivo, que incidirá sobre setores com impactos ambientais e sociais, como a mineração. Embora o imposto seletivo tenha uma função extrafiscal — ou seja, desestimular o consumo de produtos prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente —, seu caráter arrecadatório tem gerado controvérsias. No caso da mineração, setor essencial para a transição energética, surge a pergunta: o Brasil realmente deseja desincentivar essa atividade? Tal questão gera debates sobre como conciliar a preservação ambiental com a geração de recursos para setores estratégicos da economia.

Outro setor fortemente afetado pela reforma tributária é o de bebidas, especialmente as bebidas açucaradas. O imposto seletivo sobre esses produtos busca reduzir o consumo, apontando os riscos à saúde pública, como o excesso de açúcar. No entanto, Lina Santin questiona por que apenas as bebidas açucaradas foram alvo desse tratamento, enquanto outros produtos igualmente ricos em açúcar não foram contemplados. Isso aponta para a necessidade de um maior detalhamento técnico e de discussões mais aprofundadas para garantir que o imposto seletivo seja aplicado de forma justa e equilibrada.

Além disso, o setor de bebidas alcoólicas também tem sido palco de intensos debates, com diferentes segmentos da indústria defendendo seus interesses específicos. Esse embate setorial pode ser exacerbado pela reforma, especialmente se houver adoção de alíquotas diferenciadas para determinados produtos, o que poderia gerar distorções competitivas e insegurança jurídica.

O modelo de split payment, uma das grandes apostas do governo para combater a sonegação fiscal e aumentar a arrecadação sem a necessidade de elevar as alíquotas, é outra área crítica. No entanto, sua implementação não será simples e demandará uma coordenação estreita entre as empresas e a Receita Federal. O sucesso dessa iniciativa dependerá de uma infraestrutura sólida e bem planejada.

A reforma tributária brasileira promete simplificar e modernizar o sistema fiscal, mas também traz à tona uma série de desafios que podem desestabilizar setores vitais da economia. Setores como o de mineração e bebidas enfrentarão questões técnicas, operacionais e fiscais que precisam ser amplamente discutidas para que os impactos negativos sejam minimizados.

É ingênuo supor que o texto aprovado pela Câmara permanecerá inalterado pelo Senado, dado que ainda há questões que requerem ajustes. A profundidade e a complexidade dessa reforma demandam um diálogo contínuo entre o governo, o setor produtivo e a sociedade, a fim de assegurar que as mudanças sejam implementadas de maneira justa e eficaz. Sem essa colaboração, existe o risco de que o novo sistema, em vez de estimular o crescimento econômico, possa gerar instabilidade em setores estratégicos da economia brasileira, comprometendo o desenvolvimento do país.

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Marcela Guizo é tributarista com mais de 12 anos de experiência na área fiscal e tributária. Graduada em Ciências Contábeis, possui MBA em Gestão de Negócios pela USP/Esalq e MBA em Big Data & Analytics pela FIAP. Passou por PwC e participa do Mulheres no Tributário.


Os artigos escritos pelos “colunistas” não refletem necessariamente a opinião do Portal da Reforma Tributária. Os textos visam promover o debate sobre temas relevantes para o país.


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