Tributação sobre consumo: o fim da guerra fiscal entre estados?

Photo of human hands holding pencil and ticking data in documents. Reprodução: Freepik.

Por Isaac Clemente Coelho

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A tributação sobre o consumo no Brasil tem sido um tema de intenso debate e controvérsia, especialmente no que diz respeito à chamada “guerra fiscal” entre os estados. Essa disputa, que se arrasta há décadas, envolve a concessão de benefícios fiscais por parte dos estados para atrair investimentos e empresas, gerando distorções na economia e impactos significativos nas receitas públicas. Com a recente reforma tributária, que propõe mudanças profundas no sistema de impostos sobre o consumo, surge a esperança de que esse conflito possa chegar ao fim. Este artigo busca explorar os aspectos históricos, econômicos e jurídicos da guerra fiscal, analisar as propostas da reforma tributária e discutir se, de fato, estamos diante do fim desse embate entre os estados.

Contexto Histórico da Guerra Fiscal

A guerra fiscal no Brasil tem suas raízes na década de 1990, quando a Constituição Federal de 1988 estabeleceu a autonomia dos estados para legislar sobre o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS). O ICMS é um imposto estadual que incide sobre o consumo de mercadorias e serviços, sendo a principal fonte de receita para os estados. No entanto, a competência dos estados para definir alíquotas e conceder benefícios fiscais acabou gerando uma competição desleal entre as unidades federativas.

Na busca por atrair investimentos e gerar empregos, muitos estados passaram a conceder isenções, reduções de alíquotas e créditos presumidos do ICMS para empresas que se instalassem em seus territórios. Esses incentivos fiscais, embora benéficos para os estados que os concediam, criaram um cenário de desigualdade e concorrência predatória, prejudicando estados menos desenvolvidos e reduzindo a arrecadação nacional.

Impactos Econômicos da Guerra Fiscal

A guerra fiscal trouxe uma série de impactos negativos para a economia brasileira. Em primeiro lugar, ela distorceu a alocação de recursos, uma vez que as empresas passaram a escolher suas localizações com base nos benefícios fiscais oferecidos, e não em critérios de eficiência econômica ou logística. Isso resultou em uma distribuição geográfica desigual das atividades produtivas, concentrando investimentos em regiões que podiam oferecer maiores incentivos, em detrimento de outras áreas do país.

Além disso, a guerra fiscal reduziu a arrecadação de ICMS, que é fundamental para o financiamento de políticas públicas e serviços essenciais, como saúde, educação e infraestrutura. A perda de receita foi particularmente significativa para os estados mais pobres, que não tinham condições de competir com os incentivos oferecidos pelos estados mais ricos. Essa dinâmica exacerbou as desigualdades regionais e comprometeu a capacidade de investimento dos governos estaduais.

Outro impacto relevante foi a complexidade e a insegurança jurídica geradas pela multiplicidade de regimes fiscais. As empresas passaram a enfrentar um emaranhado de normas e regras diferentes em cada estado, aumentando os custos de compliance e criando um ambiente de negócios menos favorável. A falta de harmonização tributária também dificultou a integração econômica do país, prejudicando a competitividade das empresas brasileiras no mercado internacional.

A Reforma Tributária e o Fim da Guerra Fiscal

Diante dos problemas causados pela guerra fiscal, a necessidade de uma reforma tributária que promovesse a harmonização e a simplificação do sistema de impostos sobre o consumo tornou-se evidente. Em 2023, após anos de discussões e negociações, o Congresso Nacional aprovou uma reforma tributária que promete mudar radicalmente o cenário da tributação sobre o consumo no Brasil.

A principal mudança trazida pela reforma é a criação de um Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), que unificará o ICMS, o Imposto sobre Serviços (ISS) e outros tributos sobre o consumo. O IBS será um imposto de valor agregado (IVA), nos moldes do que já existe em diversos países ao redor do mundo. A adoção de um IVA no Brasil tem como objetivo simplificar o sistema tributário, reduzir as distorções econômicas e promover a integração nacional.

Uma das características mais importantes do IBS é a sua centralização. Diferentemente do ICMS, que é administrado pelos estados, o IBS será gerido por um órgão federal, com a participação dos estados e municípios na definição das alíquotas e na distribuição da arrecadação. Essa centralização é vista como uma forma de acabar com a guerra fiscal, uma vez que os estados perderão a autonomia para conceder benefícios fiscais de forma individual.

Além disso, a reforma prevê a criação de um fundo de equalização, que redistribuirá parte da arrecadação do IBS para os estados e municípios mais pobres. Esse mecanismo tem como objetivo reduzir as desigualdades regionais e garantir que todas as unidades federativas tenham condições de oferecer serviços públicos de qualidade, independentemente de sua capacidade econômica.

Desafios e Perspectivas

Apesar dos avanços trazidos pela reforma tributária, o fim da guerra fiscal ainda enfrenta desafios significativos. Em primeiro lugar, a implementação do IBS exigirá uma ampla coordenação entre os governos federal, estaduais e municipais, o que pode gerar resistências e conflitos de interesse. A transição para o novo sistema também será complexa, exigindo ajustes nas legislações estaduais e municipais, além de adaptações por parte das empresas.

Outro desafio é garantir que a centralização do IBS não comprometa a autonomia dos estados e municípios. Apesar dos benefícios da harmonização tributária, é fundamental que as unidades federativas mantenham certa flexibilidade para definir políticas fiscais que atendam às suas necessidades específicas. O equilíbrio entre a centralização e a autonomia será crucial para o sucesso da reforma.

Por fim, é importante destacar que o fim da guerra fiscal não resolverá todos os problemas relacionados à tributação sobre o consumo no Brasil. A reforma tributária é um passo importante, mas outras medidas serão necessárias para promover a justiça fiscal, reduzir a carga tributária sobre os setores produtivos e melhorar a eficiência do sistema como um todo.

Conclusão

A guerra fiscal entre os estados tem sido um dos principais desafios da tributação sobre o consumo no Brasil, gerando distorções econômicas, desigualdades regionais e perdas de arrecadação. A recente reforma tributária, com a criação do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), representa uma oportunidade histórica para acabar com esse conflito e promover a harmonização do sistema tributário.

No entanto, o sucesso da reforma dependerá da capacidade do governo e das unidades federativas de superar os desafios da implementação e garantir um equilíbrio entre a centralização e a autonomia. Se bem executada, a reforma poderá não apenas acabar com a guerra fiscal, mas também contribuir para a redução das desigualdades regionais, a simplificação do sistema tributário e a melhoria do ambiente de negócios no país.

O fim da guerra fiscal entre os estados é, portanto, uma possibilidade real, mas que exigirá esforços conjuntos e um compromisso com a justiça fiscal e o desenvolvimento econômico sustentável. A reforma tributária é um passo importante nessa direção, mas o caminho para um sistema tributário mais justo e eficiente ainda está em construção.


Isaac Clemente Coelho é Especialista em Economia, Diretor Executivo na IC ISHOLDING, Diretor na Quiroprax Colchões e Perito Judicial (Justiça Federal e Tribunal de Justiça do Paraná).


Os artigos escritos pelos “colunistas” não refletem necessariamente a opinião do Portal da Reforma Tributária. Os textos visam promover o debate sobre temas relevantes para o país.