Enquanto o Brasil debate a Reforma Tributária, com as propostas dos PLPs 68 e 108 no Congresso Nacional, surge a questão: nosso sistema tributário atual obedece ao princípio da capacidade contributiva? A proposta central da reforma é harmonizar as regras tributárias no país, eliminando distorções regionais e trazendo mais justiça fiscal. Mas será que isso é o bastante?
O fato é que a Reforma Tributária é uma necessidade indiscutível. O sistema que temos hoje é confuso, difícil de entender, e onera desproporcionalmente o consumo. No cenário ideal, a tributação deveria seguir o princípio da capacidade contributiva (art. 145, §1º CF/88): quem tem mais paga mais. Essa ideia é antiga e universal. Já no século XVIII, o economista Adam Smith defendia que os impostos deveriam ser proporcionais à renda para evitar que sufocassem a liberdade econômica. No entanto, o Brasil parece ter invertido essa lógica, adotando um modelo regressivo e penalizando desproporcionalmente as classes mais pobres.
Embora o Imposto de Renda (IR) leve em conta aspectos pessoais do contribuinte, incorporando deduções e progressividade conforme a renda, o panorama geral dos tributos no Brasil revela uma realidade distorcida. Uma pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) apontou que famílias com renda mensal de até dois salários mínimos comprometem 53,9% de sua renda com tributos, o que representa cerca de 197 dias de trabalho dedicado ao pagamento de impostos. Em contrapartida, famílias que recebem acima de trinta salários-mínimos comprometem apenas 29% de sua renda, ou 116 dias de trabalho.
Isso revela uma inversão da lógica de justiça tributária, onde aqueles com menor renda acabam, proporcionalmente, arcando com uma carga tributária maior do que os mais ricos. Assim, o sistema tributário brasileiro funciona como um “Robin Hood às avessas”, onde os mais pobres pagam, proporcionalmente, mais impostos do que os mais ricos.
Essa desigualdade aparece de forma evidente na compra de produtos básicos. Imagine duas pessoas, uma rica e uma pobre, comprando a mesma garrafa de água. Ambas pagam o mesmo valor e, portanto, a mesma carga tributária. No entanto, para uma pessoa de baixa renda, esse gasto representa uma fatia muito maior do seu orçamento. É como se o sistema estivesse “cobrando” mais de quem menos pode pagar.
Diante dessa realidade, é comum que muitos brasileiros busquem maneiras de escapar da alta carga tributária. Isso não é apenas evasão fiscal – é uma resposta a um sistema que parece cobrar o máximo de quem pode o mínimo. É a famosa “Curva de Laffer” em ação: quando os impostos ficam altos demais, as pessoas tentam evitá-los. Essa aparição é descrita pela “Curva de Laffer”, teoria popularizada nos anos 1970 que argumenta que, a partir de determinado ponto, o aumento das alíquotas leva a uma queda na arrecadação, pois incentiva os contribuintes a buscar alternativas para fugir dos tributos. No Brasil, o aumento de impostos em períodos de crise acaba intensificando a sonegação, agravando ainda mais o déficit fiscal.
Atualmente, o Congresso discute a implementação de uma alíquota padrão para o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), que deve variar entre 25% e 27,5%, mas sem definição clara até o momento. Como forma de mitigar a regressividade, o PLP 68 propõe um mecanismo de “cashback”, que devolveria parte dos impostos para as famílias de baixa renda inscritas no Cadastro Único para Programas Sociais (CadÚnico), cuja renda per capita seja de até meio salário mínimo.
Contudo, será que isso é suficiente para acabar com a desigualdade?
Não há maior inimigo da capacidade contributiva que um imposto excessivamente oneroso e complexo, que se incorpore ao custo de produção.
Os desafios para os congressistas vão além da definição de alíquotas e incluem garantir um sistema de creditamento mais eficiente, evitar barreiras que retardam a devolução e o aproveitamento de créditos e, fundamentalmente, encontrar formas de compensar a ausência de progressividade fiscal no consumo.
Embora as propostas em discussão contemplem um sistema ampliado de créditos nas operações comerciais, persiste a preocupação com a complexidade operacional e de fiscalização do novo imposto. Um sistema com regras excessivas e alíquotas elevadas corre o risco de alimentar um contencioso tributário, reabrindo conflitos de interpretação e gerando novos litígios. Sem uma estrutura simples e transparente, a reforma poderá até agravar os problemas de hoje. Portanto, é crucial que os debates no Congresso Nacional avancem em direção a um sistema tributário que incorpore, de fato, o princípio da capacidade contributiva. Só assim será possível redistribuir a carga tributária de forma mais justa e eficaz. Somente uma reflexão profunda sobre as distorções do modelo atual permitirá que o Brasil construa um sistema que não funcione como um “Robin Hood às avessas”, mas que promova, de verdade, uma justiça fiscal que beneficia a sociedade como um todo.
Helton Kramer é Procurador do Estado do Paraná; Doutor em Direito Tributário pela UNIMAR; Mestre em Direito Constitucional pela UNIBRASIL, com estudos na UFPR; Graduado em Ciências Contábeis pela UNIPAR; Graduado em Direito pela Universidade Positivo; Professor Adjunto de Direito Tributário da Universidade Paranaense – UNIPAR; Professor-instrutor da Escola de Gestão Pública-EGP do Tribunal de Contas do Estado do Paraná
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