Por Heron Charneski
A Emenda Constitucional nº 132, de 20/12/2023, veiculou a reforma tributária do consumo e também estabeleceu que o Sistema Tributário Nacional deve observar uma série de “princípios”, entre os quais o da “simplicidade” (§ 3º do art. 145 da Constituição Federal).
Antes disso, a Constituição abordava expressamente a simplicidade tributária em uma situação pontual, qual seja, o regime tributário simplificado para o universo específico das microempresas e empresas de pequeno porte (art. 146, III, “d”).
A menção da emenda à simplicidade como um princípio jurídico no contexto global do sistema constitucional tributário traz uma série de questões a serem investigadas.
Em um primeiro momento, é de ver-se que a simplificação do sistema tributário parece ser um daqueles axiomas irrefutáveis, justificativa em si contra a qual poucos ousariam objetar. Se o sistema tributário brasileiro tem sido acusado, com razão, de muito complexo e até de caótico, é evidente que a busca de simplificação desse sistema possui um mérito intrínseco.
Não se trata, aliás, de clamor apenas nacional, nem de ideia nova.
No clássico “A riqueza das Nações”, Adam Smith mencionava a eficiência, junto à igualdade, à certeza e à conveniência, como a máxima de um sistema tributário de qualidade. O tributo não deveria ser uma contribuição desproporcional ao tesouro público, em relação ao custo para arrecadá-lo, nem deveria ser tão oneroso para a sociedade, em relação aos benefícios para o erário: essas situações terminariam por obstar a indústria, promover a evasão ou expor os contribuintes a fiscalizações opressoras e vexatórias.
Também é possível pensar que um sistema tributário mais simples promove, além de maior riqueza às nações, uma maior justiça. Afinal, um sistema tributário excessivamente complexo implica ineficiência administrativa, aumento da evasão e por consequência aumenta a desigualdade geral. Da mesma forma que se deve proteger o contribuinte contra exigências em desacordo com a Constituição, deve ser do interesse da sociedade que se assegure que os deveres tributários sejam cumpridos.
Contudo, a impressão inicial de que a desejada simplificação é um objetivo por si só de um sistema tributário de qualidade passa a desafiar dúvidas, quando se verifica que a matéria tributária nem sempre é óbvia e complexa, e nem sempre pode ser.
Pense-se apenas na ideia de um sistema em que houvesse um imposto único pago em valores fixos por indivíduo. Esse chamado “lump-sum tax” seria potencialmente eficiente, já que não afetaria a escolha de consumo marginal do consumidor (o “equilíbrio de Pareto”); e seria simples, porque isonômico na perspectiva geral de que todos o pagariam. Todavia, como se sabe, a ideia de um tal tributo fixo “per capita” é das mais rejeitadas, porque não distribui o ônus tributário conforme o critério de igualdade mais difundido, a capacidade contributiva.
Em outros termos, se o Brasil pretende arrecadar, por hipótese, R$ 3 trilhões em determinado ano, e se possui 250 milhões de habitantes, bastaria cobrar R$ 12.000,00 por habitante ao ano. Simples, não? Porém, é intuitivo que essa sistemática deixaria de promover uma distribuição equânime da riqueza para custear os gastos públicos.
Tais observações iniciais já demonstram que o sistema tributário não é um mero conjunto de regras para angariar fundos para financiamento das atividades estatais, mas algo que afeta a eficiência – portanto, a economia –, a distribuição de renda e a própria segurança da sociedade.
E essa não é uma constatação aplicável apenas a um sistema tributário de qualidade, mas a um sistema jurídico democrático em geral. Por exemplo, o sistema política de separação de poderes é complexo por natureza, mas é construído para assegurar a liberdade individual, que não toleraria a acumulação de poderes legislativos, executivos e judiciais nas mesmas mãos.
Pois bem, daí se vê que existe uma permanente tensão entre simplicidade e outros objetivos de um Estado Democrático de Direito, que impõe à política tributária a necessidade de reconciliar fins por vezes contraditórios, o que torna complexa e por vezes não tão direta a escolha das formas de tributar.
Muitos lembram do exemplo dos Estados Unidos em que, com efeito, a tributação da renda consumida se apresenta mais simples, no ato do consumo (sales tax). Ao mesmo tempo, o sistema do Imposto de Renda norte-americano é um dos mais detalhados em regras do mundo. Posner, autor liberal da Escola de Chicago, chegou a afirmar que a legislação tributária federal, no campo do Imposto de Renda, é uma área em que é preferível uma legislação complexa, altamente detalhada e frequentemente alterada pelo Congresso, a uma “administração” judicial do tributo fundado em padrões flexíveis. E há quem entenda que a “longa” lei federal do imposto de renda norte-americano alcança, em razão do seu detalhamento de regras, um grau mais elevado de segurança jurídica que outros sistemas.
Em síntese, parece não haver uma solução simples para a complexidade tributária, que em algum grau é necessária para assegurar um sistema fiscal amplo, justo e seguro.
Seja como for, se há uma complexidade inerente e necessária no sistema tributário em que, até certos níveis, é difícil simplificá-lo, qual seria o sentido então da introdução de um “princípio da simplicidade” pela EC 132/23, e qual o seu significado?
Em meu livro “Função Simplificadora das Regras Tributárias e o Lucro Como Base de Cálculo do Imposto de Renda das Pessoas Jurídicas” (IBDT, 2024), abordo a simplificação tributária como fundamentada no princípio da igualdade sob uma perspectiva geral. Isto é, busca-se o tratamento semelhante de contribuintes semelhantes que são chamados pela norma a contribuir de maneira igualitária, e com os menores custos, para o financiamento coletivo, e não na perspectiva de um contribuinte determinado perante os demais.
Nesse contexto, com o advento da EC 132/23, a simplicidade poderia ser entendida como um subprincípio direcionado ao legislador e associado ao princípio superior da igualdade geral. Ao simplificar, a norma com tal eficácia busca alcançar o maior número de contribuintes em situação equivalente quanto às suas capacidades de contribuir com o Erário.
É claro que, ao assim proceder, essa norma também pode estar se afastando da igualdade individual e vertical, deixando de reconhecer circunstâncias específicas que aproximariam a tributação da efetiva capacidade contributiva que busca alcançar. A opção pela facilidade arrecadatória, necessária para padronizar o alcance da norma dentro de uma mesma classe de contribuintes, poderá então ocorrer em detrimento da capacidade contributiva e da própria isonomia que a justifica.
Assim, se como ideia geral a simplicidade desafia o intérprete a testar os seus limites, não menores são as dificuldades de sua aplicação pelo legislador tributário.
Pode-se analisar então o subprincípio da simplicidade no bojo de uma relação de tensão entre as dimensões gerais e coletivas e individuais e subjetivas da igualdade; estruturalmente, a igualdade se converte tanto em fundamento como em limite da simplificação.
Essa tensão demonstra que não se pondera propriamente a simplicidade com outros princípios, para saber qual deve prevalecer em dada disciplina. O que se pondera são aspectos diferentes da própria igualdade, inclusive à luz dos efeitos sobre a livre concorrência e do grau de desigualdade provocado pela simplificação.
Em outras palavras, a tensão interna que a simplificação introduz no princípio da igualdade não se resolve por uma abstrata ponderação, e sim pelo grau ou nível de promoção da igualdade geral que o efeito simplificador da norma provoca, à vista das discrepâncias produzidas na realização da igualdade individual, aferidas pela extensão, intensidade e qualidade das desigualdades provocadas.
Essa a tarefa colocada ao legislador ordinário reformista: promover a justiça tributária por meio da capacidade contributiva como um objetivo primário, tendo a simplicidade como um meio para atingir o objetivo primário. Do contrário, sem a melhoria equilibrada da igualdade tributária, a simplicidade corre o risco de tornar-se, tão-somente, um objetivo secundário, ou quem sabe até uma quimera.
Esse artigo foi publicado com exclusividade na Revista da Reforma Tributária. Acesse a edição completa aqui (é gratuito).
Heron Charneski é advogado e contador, doutor e mestre em Direito Tributário pela Universidade de São Paulo (USP), LL.M. em Direito Comercial Internacional (University of California), Presidente do Instituto de Gestão Empresarial de Tributos (IGET) e sócio-fundador do Charneski Advogados.
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