O que é neutralidade: a importância da alíquota única e universal

A realidade se desvia consideravelmente desse ideal, escreve Marcos Cintra
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Por Marcos Cintra

A neutralidade é um dos conceitos mais defendidos quando se discute reforma tributária.

Basicamente, um sistema tributário neutro não altera as decisões econômicas dos contribuintes. Esse princípio é fundamental para garantir um ambiente de negócios justo e competitivo, onde todas as empresas, independentemente do setor ou produto, estejam sujeitas a condições tributárias semelhantes e mais próximas possível de uma situação de ausência de tributos. Isso incentiva a produtividade, a inovação e o crescimento econômico sustentável, beneficiando toda a sociedade a longo prazo.

Além disso, a neutralidade é crucial para a justiça fiscal. Impostos diferenciados entre setores podem criar distorções e injustiças, favorecendo configurações específicas de negócios enquanto penalizam outras.

Uma alíquota única e universal contribui para evitar (mas não elimina) essas distorções, reforçando a confiança dos contribuintes no sistema tributário e na equidade das políticas governamentais. 

Infelizmente, fora de abstrações acadêmicas, não há sistema tributário absolutamente neutro.

A avaliação de um modelo tributário deve ser realizada em termos de mensuração dos desvios globais relativamente a uma situação ideal. Vale lembrar que a teoria do “second best ” já nos ensinou que não se trata de contagem de desvios relativamente a uma situação ideal, mas sim de uma avaliação global que inclua todos os trade offs entre pontos positivos e negativos de cada modelo analisado e mensurado em sua concretude. 

A importância da alíquota única e universal

Ao falar de neutralidade tributária, é essencial diferenciar entre o Imposto sobre o Valor Adicionado (IVA) e outros modelos como os impostos sobre faturamento ou movimentação financeira (turnover taxes).

Enquanto o IVA foi desenhado para ser um imposto não cumulativo, garantindo que as alíquotas incidam apenas sobre o valor adicionado em cada estágio da produção e distribuição, a alíquota nominal é a alíquota efetiva para o consumidor; já os impostos sobre faturamento ou sobre movimentação financeira são cumulativos, resultando em uma cascata de impostos que se acumula nos preços finais com alíquota efetiva dependente do processo de produção.

Vale lembrar, contudo, que a base de incidência dos turnovers é maior que a do valor agregado numa dada sequência de operações, de tal forma que, fixada uma determinada meta de arrecadação, as alíquotas dos IVAs são significativamente mais elevadas do que as necessárias para os turnovers

No caso dos impostos sobre faturamento, cada transação é tributada integralmente, sem considerar o valor que já foi tributado nas etapas anteriores. Isso gera a o conhecido efeito cascata. Contudo, essa singela verdade tem levado à conclusão equivocada de que os turnovers necessariamente geram sempre mais distorções que os IVAs. Ou seja, há uma crença generalizada de que um tributo em cascata afeta a neutralidade fiscal mais do que um IVA. Vale lembrar que esta afirmação apenas se sustenta no caso de comparação dos dois tributos (IVA e turnover) aplicados com alíquotas iguais, mas que não se aplica para o caso empiricamente mais relevante de comparação dos dois tributos para atingir uma dada meta de arrecadação. E nesse caso, a cumulatividade com uma alíquota mais baixa pode gerar menos distorções que um IVA com alíquota mais elevada. Há que se mensurar esses efeitos antes de qualquer conclusão definitiva sobre a eficiência dos dois modelos tributários.

É razoável supor que a neutralidade é mais atingível em um sistema de IVA com uma alíquota única e universal. Para que o IVA mantenha sua promessa de neutralidade, é desejável que todas as transações sejam tributadas de maneira uniforme, sem exceções que poderiam distorcer o mercado.  Foram essas premissas que embasaram a PEC 45/2019, um projeto bem elaborado, porém de pouca viabilidade política.  Já os impostos sobre faturamento, com sua natureza cumulativa, falham em proporcionar um impacto neutro e transparente, ainda que com seus efeitos distorcidos sejam compensatoriamente movidos por alíquotas mais baixas. 

No caso do IBS/CBS é difícil argumentar por sua neutralidade. 

O PLP68/2024 que regulamenta a EC 132/23 IBS/CBS terá no mínimo dezesseis alíquotas diferentes, fora as variações possíveis entre estados e municípios. Cada setor ou produto, ao ser tributado de maneira diversa, enfrenta incentivos e desincentivos econômicos que podem alterar suas dinâmicas de mercado, prejudicando a concorrência saudável e a eficiência econômica. Um caminhão, um torno mecânico ou um serviço de TI pode ter n preços diferentes espalhados pela economia. Com essa variedade de alíquotas, a suposta neutralidade do IBS/CBS fica definitivamente comprometida. A ideia original de um imposto neutro, que não privilegia nem penaliza indústrias específicas, se perde completamente. Setores com menor alíquota podem acabar sendo mais competitivos, não por eficiência, mas por conta da tributação mais leve. Ao mesmo tempo, setores com alíquotas mais elevadas podem ver seus custos aumentarem, repassando esse valor ao consumidor final e criando ineficiências sistêmicas.

Essa não-neutralidade é ainda mais preocupante no mercado intermediário de bens e serviços. Empresas que adquirem insumos com alíquotas diversas podem não conseguir repassar esses custos adicionais de maneira uniforme ao longo da cadeia produtiva, exceto no caso improvável de curvas de demanda totalmente inelásticas. Isso significa que as distorções criadas pelas diferentes alíquotas do IBS/CBS se acumulam a cada etapa de produção, potencializando as ineficiências e prejudicando a formação de preços de equilíbrio.  Setores ou regiões com alíquotas mais baixas poderiam ter vantagens competitivas pontuais e injustificáveis. A complexidade adicional das diferentes alíquotas ainda gera maiores custos de compliance e de fiscalização, complicando ainda mais o cenário tributário brasileiro.

Eis as alíquotas do IBS/CBS, smj.: 

1. padrão (26,5% ?)

2. Zero

3.99% de redução

4. 60% de redução

5. 40% de redução

6. 30% de redução

7. 20% de redução

8. Compras governamentais

9. Split payment varejo

10. Transporte Intermunicipal e interestadual

11.Hotelaria

12. Centros históricos

13. Bares e restaurantes

14. Combustíveis

15. SAF clubes

16. Serviços financeiros

Portanto, fica claro que a tão prometida alíquota única e universal para obter neutralidade é uma utopia no contexto do IBS/CBS. Comparado a sistemas tributários de países membros da OCDE, onde muitos adotam uma ou poucas alíquotas para garantir a simplicidade e a neutralidade fiscal, o sistema brasileiro se destaca negativamente.

Por exemplo, na Nova Zelândia e na Austrália, adota-se uma alíquota geral quase-única para o imposto sobre bens e serviços (GST). O GST indiano possui várias alíquotas que variam de acordo com o tipo de bem ou serviço. As principais alíquotas são 0%, 5%, 12%, 18% e 28%.Além dessas alíquotas principais, existem também alíquotas especiais para itens específicos, como ouro e pedras preciosas, que são tributados a 3%, e itens de luxo e produtos não essenciais, que podem ter uma sobretaxa adicional.Essa estrutura de múltiplas alíquotas visa acomodar as diferentes necessidades econômicas e sociais do país, mas também pode complicar a administração e o cumprimento do imposto, além de afetar a neutralidade do sistema tributário. Todavia, o Brasil vai muito além, propõe mais de quinze alíquotas diferentes, fora as possíveis variações regionais de estados e municípios, o que torna o sistema mais complexo e propenso a distorções.

Conclusão

Para finalizar, é crucial entender que apesar das promessas de neutralidade associadas ao IBS/CBS, a realidade se desvia consideravelmente desse ideal. O conceito de neutralidade tributária é algo complexo e delicado, que só pode ser atingido sob certas condições muito específicas – uma delas sendo a aplicação de uma alíquota única e universal. No entanto, com a existência de mais de quinze alíquotas setoriais diferentes para diversos setores e produtos, fora as variações regionais, o IBS falha em cumprir essa condição essencial. 

Dessa forma, a narrativa vendida à sociedade de que o IBS é neutro porque não-cumulativo é, no mínimo, enganosa. A multiplicidade de alíquotas não apenas compromete a neutralidade prometida, mas também introduz uma nova camada de complexidade no sistema tributário, contrastando diretamente com o objetivo de uma reforma tributária simplificadora, neutra e equitativa. 

Portanto, é fundamental que os envolvidos na discussão sobre a reforma tributária tenham consciência de que o IBS/CBS, da maneira que está sendo proposto, está longe de ser o modelo de neutralidade que se prega. A sociedade merece uma análise crítica e transparente sobre os verdadeiros impactos dessa proposta, evitando que um engano de tal magnitude seja perpetuado.


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Marcos Cintra é doutor em economia pela Harvard University (EUA) e professor-titular e vice-presidente da FGV (Fundação Getulio Vargas). Foi secretário especial da Receita Federal.


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