Por Danilo Leal
Ainda que grande parte da sociedade desconheça completamente esse acontecimento histórico, fato é que a reforma tributária é uma realidade devidamente esculpida em nossa Constituição Federal. E, como não poderia ser diferente, ela vem carregada de discussões apaixonadas entre defensores de um lado e críticos do outro, sejam especialistas ou não em matéria tributária.
Em todas essas discussões, estamos sempre encarando o instituto ‘tributo’ em sua mais evidente faceta, qual seja, a de instrumento de arrecadação estatal. Acredito que, exatamente por nos atermos especialmente a esse prisma financeiro, temos discussões bastante intensas; elas mexem obviamente no órgão mais sensível de uma pessoa, seja ela física ou jurídica: o bolso.
Mas, para além da questão financeira que o tributo exerce sobre todos nós, gostaria de convidá-lo a uma reflexão sobre outros impactos resultantes da implementação da nossa reforma tributária. Já antecipo que pretendo fazer essa reflexão em um próximo artigo. Antes disso, quero estabelecer a nossa base de diálogo por meio da história. Eu sei que especialistas das mais diversas áreas podem certamente listar uma série de benefícios que a reforma irá gerar para as empresas e para a sociedade de forma sistêmica. Mas quero ir além e questionar se teremos mudanças na forma como interagimos e até mesmo em nossos hábitos de consumo ou de organização social.
Não pretendo aqui fazer um exercício de futurologia que muito provavelmente estaria fadado ao fracasso, com previsões que poderiam jamais se materializar. Mas, se voltarmos nossa atenção ao passado, acredito que conseguiremos ver que tributo, para além de um instrumento de arrecadação estatal para suprir as necessidades da administração pública, é uma ferramenta que ao longo de toda história moldou toda nossa civilização. A forma como nos organizamos, com mudanças estruturais profundas, sempre permeadas por tributos. E, porque não dizer, reformas tributárias, razão pela qual ouso dizer que tributo define sua vida e muito de quem você é.
Vamos lá! Acredita-se que o tributo tenha surgido inicialmente, como o próprio nome sugere, como um presente voluntário para líderes tribais, em decorrência de seu papel proeminente exercido perante suas respectivas comunidades. Mais tarde, com a compreensão da importância desses recursos, o tributo passou a ser uma “vaquinha”, por meio da qual tribos financiavam guerras para dominação de outros povos para compartilhar o espólio dos derrotados. E só mais recentemente, o tributo passa então a funcionar como cobrança organizada e obrigatória financiadora de todas as atividades estatais.
Inegável que a instituição do tributo foi base essencial para o desenvolvimento das primeiras civilizações, resultando na construção de obras públicas, monumentos, manutenção de exércitos e na própria ordem social. No decorrer da história, tributos viraram sistemas e regime tributários, sempre adaptando às necessidades e estruturas de cada civilização.
A Grécia antiga talvez seja o melhor exemplo de sociedade que institui o tributo administrado pelo Estado de forma organizada, construindo a maior civilização do mundo antigo e influenciando ainda hoje a forma de pensar e de se organizar de boa parte da atual sociedade. Outro exemplo evidente e de destaque foi Roma, que, por meio do tributo, financiou expansões militares, conquistando boa parte do mundo à época conhecida, impondo seus costumes e forma de governar.
Agora, o mesmo tributo que constrói é a ferramenta da ruptura e mutação da sociedade, sendo o expoente maior da mudança a própria reforma tributária. Vejamos.
Na Suméria, por volta do ano 2.400 a.c, tem-se notícia da primeira reforma tributária conhecida. O Rei Urukagina, governante da cidade-estado de Lagash, ao depor seu antecessor, implementou uma série de medidas combativas à cobrança de impostos extorsivos que incluíam isenção de impostos para viúvas, órfãos e sacerdotes e redução de tributos para agricultores e artesãos. Infelizmente, não sabemos se as medidas de Urukagina surtiram o efeito esperado, pois seu reinado foi bastante curto, tendo durado apenas dez anos, quando a cidade caiu ao ser atacada por sua vizinha Umma.
Na idade média, um grande exemplo de mudança ocorrida motivada por tributos foi a assinatura da Carta Magna, base dos direitos ingleses e da formação do próprio Reino Unido, que nada mais foi que o resultado do aumento significativo de tributos impostos pelo Rei João Sem-Terra com objetivo de financiar cruzadas, e guerras contra a França. Os barões ingleses revoltaram-se e obrigaram o Rei à assinatura do documento que limitava substancialmente o poder real e, claro, o poder de tributar.
Já no século XVII, pesados tributos foram impostos pelo Rei Espanhol Felipe II, resultando na conhecida Revolta dos Flamengos, revolta essa que contribuiu sobremaneira para a criação da República Holandesa e o início de sua independência, tornando-a uma grande potência naval. Os holandeses experimentaram uma mudança social e cultural em decorrência desse evento.
Na idade moderna, os dois maiores exemplos que aconteceram de forma simultânea são a Independência Americana em 1776 e a Revolução Francesa em 1789. Por mais que existam justificativas de toda a sorte para a ocorrência desses dois eventos, fato é que ambos estão substancialmente fundamentados nos regimes tributários impostos a esses países.
Nos Estados Unidos, após a Guerra dos Sete Anos, o Reino Unido impôs às colônias americanas um aumento de tributos sobre açúcar, chá, vinho e outros produtos, culminando, como sabemos, com a declaração de independência e a formação dos Estados Unidos da América. Já na França, o ‘terceiro estado’, composto pela classe trabalhadora e burguesia, que vinham há anos sustentando o Estado, revoltaram-se com o direito assegurado ao clero e à nobreza de não pagar tributos. Resultado: mudança da ordem social com o fim da monarquia e instauração de uma república.
E muitos são os exemplos que poderíamos listar, como a Independência da Índia em 1947, motivada pela forte tributação imposta pelos ingleses aos produtos agrícolas do país. A Revolução Cubana de 1959 originada pela alta carga tributária imposta por uma elite ligada aos Estados Unidos, que mudou sobremaneira costumes da sociedade cubana em decorrência de seu novo modelo de Estado, dentre outros eventos históricos.
E no Brasil? Também inúmeros são os exemplos! O mais emblemático e conhecido foi a Inconfidência Mineira de 1789 na qual a elite mineira, insatisfeita com a famosa cobrança do quinto (20% do ouro extraído era pago para a coroa portuguesa) e da derrama, que de forma simples nada mais era que um confisco, voltou-se contra Portugal. Ainda que não tenha derrotado a coroa, essa revolta foi fundamental para a independência do Brasil, que ocorreria anos mais tarde.
E, por mais que seja emblemática, não é a única. Poderíamos citar ainda a Revolta dos Beckman em 1684 no Maranhão, Revolta de Vila Rica em 1720 em Minas Gerais, Cabanagem em 1935 no Pará e até mesmo a famosa Guerra das Farroupilhas no Rio Grande do Sul em 1835, todas em alguma medida motivadas por questões tributárias, sendo esta última uma revolta que explodiu pela alta tributação imposta ao charque.
O que vemos com todos esses movimentos é que o tributo é um instituto dual: ao mesmo tempo que é uma ferramenta de construção de nações, é ponto de atrito entre governantes e governados e, em última instância, um catalisador de mudanças estruturais da sociedade.
E eis que chegamos finalmente à nossa atual reforma tributária. Ela não vem contornada de rampantes ou revoltas típicas de guerra civil – obrigado céus – mas é fruto de décadas de insatisfação e tensão entre a sociedade e o governo.
A pergunta que fica no ar e digna da ousadia de ser analisada é: qual será o seu efeito prático para além das questões financeiras? Será que veremos mudanças concretas em nossa sociedade, como muitas vezes ocorreram ao longo da história? Você acredita que essa reforma mudará o famoso “jeitinho brasileiro” de muitas empresas? Ou quem sabe até a famosa “Lei de Gerson”? Quero convidá-lo à reflexão sobre o tema. Durma com esse incômodo e vamos trocar nossas percepções em nosso próximo encontro nessa coluna.
Do meu lado, apenas espero que ela não seja tão efêmera como foi o reinado de Urukagina e que possamos assistir à construção de uma sociedade mais forte e, porque não dizer, mais justa.
Danilo Leal é sócio-conselheiro da /asbz. Atua na área tributária. Tem pós-graduação em direito tributário pelo IBDT (Instituto Brasileiro de Direito Tributário) e graduação pela PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo).
Os artigos escritos pelos colunistas”não refletem necessariamente a opinião do Portal da Reforma Tributária. Os textos visam promover o debate sobre temas relevantes para o país.