Questão de Princípios: neutralidade do IBS e da CBS

Heron Charneski explora como a busca por um sistema fiscal mais equilibrado enfrenta desafios práticos, revelando o dilema entre a teoria e a aplicação no contexto tributário

A Emenda Constitucional nº 132, de 20/12/2023, ao veicular a Reforma Tributária do Consumo (RTC), trouxe à tona o “princípio da neutralidade”. Conforme o texto constitucional, tal princípio informará o Imposto sobre Bens e Serviços – IBS (art. 156-A, § 1º, da Constituição), de competência compartilhada entre Estados, Distrito Federal e Municípios, e também a Contribuição sobre Bens e Serviços – CBS (art. 195, § 16, da Constituição), de competência da União.

Vale lembrar que a Emenda Constitucional nº 42, de 19/12/2003, já havia inserido o art. 146-A à Constituição, para prever que “lei complementar poderá estabelecer critérios especiais de tributação, com o objetivo de prevenir desequilíbrios da concorrência, sem prejuízo da competência de a União, por lei, estabelecer normas de igual objetivo”. 

Esse dispositivo tem orientado algumas importantes decisões do Supremo Tribunal Federal (STF). É o caso da tese nº 337 de repercussão geral, segundo a qual foi decidido que “não obstante as Leis nº 10.637/02 e 10.833/03 estejam em processo de inconstitucionalização, ainda é constitucional o modelo legal de coexistência dos regimes cumulativo e não cumulativo na apuração do PIS/Cofins das empresas prestadoras de serviços” (RE nº 607.642, Rel. Min. Dias Toffoli, DJe 09/11/2020). A decisão não deixou de apontar diversas incongruências do legislador de PIS e COFINS na escolha dos setores abrangidos pelo regime não cumulativo e nas técnicas de dedução de créditos, aptas a comprometer a justiça e a neutralidade do modelo previsto pelo legislador. Não obstante, ao validar naquele momento, ao menos em abstrato, o regime não-cumulativo de PIS e COFINS para as empresas prestadoras de serviços, o STF invocou o art. 146-A da Constituição para destacar a relevância da sistemática legal da não cumulatividade na prevenção dos desequilíbrios da concorrência.

Com efeito, pode surpreender falar-se em neutralidade de um tributo, na medida em que a própria existência deste provoca diferenças entre o preço de mercado e o preço que efetivamente se paga (incluindo o tributo) por bens e serviços.

Em outras palavras, a inserção do tributo afeta por si só, em maior ou menor medida, a eficiência do sistema econômico de trocas baseadas no mercado. O tributo “perturba” o ponto de equilíbrio teórico do mercado, que havia antes da incidência; altera a posição inicial dos agentes no mercado em funcionamento, e outro ponto ótimo de eficiência passa a ser encontrado.

Desse ponto de vista, a neutralidade de um tributo só pode ser uma utopia.

Não obstante, como escrevi em meu livro “Função Simplificadora das Regras Tributárias e o Lucro Como Base de Cálculo do Imposto de Renda das Pessoas Jurídicas” (IBDT, 2024), não sendo viável uma tributação totalmente neutra, a questão que se coloca é qual o sentido com que se pretende destacar a busca de um sistema mais neutro e que menos distorções cause no sistema de mercado.

Costumeiramente, duas abordagens são colocadas para explicar o estado de coisas que o princípio da neutralidade busca promover.

Uma primeira abordagem seria a da neutralidade como minimização de perdas econômicas em um sistema de trocas livres. O tributo deveria ser capaz de conduzir a distorções mínimas na formação dos preços relativos dos produtos e serviços, ou seja, de interferir menos nas decisões de produção e consumo tomadas no mercado[1]. Nessa compreensão, a proposta de tributar as operações com bens e serviços no local do seu consumo (destino) melhor atende à neutralidade. No atual regime, a regra da tributação na origem é capaz de deslocar a produção para locais com maior atratividade fiscal, ainda que menos eficientes em termos de organização dos fatores de produção ou comercialização.

Contudo, críticas a essa abordagem da neutralidade poderiam ser endereçadas no sentido de ainda ser um ideal baseado na racionalidade dos agentes econômicos, capazes de alocarem eficientemente e por si só os recursos, sem levar em conta fatores diversos, incluindo a própria existência dos tributos como custos de transação. Contrapõe-se ainda a essa abordagem que os sistemas tributários também são estruturados segundo objetivos distributivos.

Assim, surge espaço para uma segunda abordagem, que posiciona a neutralidade tributária em relação à livre concorrência, a exigir que o efeito da norma tributária não seja o de redução do grau de concorrência no mercado, e sim o de garantir um ambiente de igualdade de condições competitivas. Essa parece ser a abordagem mais próxima à da jurisprudência brasileira até então construída.

Como atesta Ridsdale, na Europa a neutralidade foi definida como princípio informador do sistema comum do IVA dentro do objetivo de estabelecer um mercado comum com competição saudável, de modo que a neutralidade fiscal se buscaria pela eliminação de distorções competitivas, sendo também limitada às circunstâncias em que bens similares e concorrentes são tributados diferentemente[2]. Ou seja, a neutralidade se daria, sob o ângulo da livre competição, quando bens similares e concorrentes são submetidos à mesma carga fiscal.

Novamente, no entanto, mesmo nessa segunda abordagem, poderão surgir choques entre a neutralidade e expedientes legislativos advindos de supostos critérios de justiça fiscal baseados nas ideias de igualdade positiva e capacidade contributiva. A própria uniformidade de alíquotas, entendida como um mote de neutralidade na tributação do consumo e uma das aspirações iniciais dos pensadores da nossa RTC, passou a conviver na tramitação legislativa com regimes e alíquotas diferenciados para certos bens e serviços considerados mais essenciais ou relevantes.

Além disso, mesmo em um sistema tributário que se pretenda neutro em relação à concorrência, pode surgir a questão do “peso morto da tributação” ou do “encargo excessivo”, entendido como a perda de bem-estar acima das receitas de impostos recolhidos.

No exemplo de Rosen e Gayer, um viajante evita o imposto sobre aluguel de carros no aeroporto, cobrado em muitas cidades, tomando um táxi e alugando um carro no centro da cidade, onde não há tal imposto[1]. A tributação no exemplo até poderia ser neutra no sentido de não distorcer a concorrência no setor de aluguel de carros (as locadoras bem estariam no aeroporto ou no centro da cidade), mas poderia trazer danos à economia pela sua capacidade de redução da demanda por certos produtos. Claramente, embora esse viajante não esteja pagando diretamente o imposto sobre o aluguel de carros no aeroporto, ele ainda é prejudicado.

Por motivos semelhantes, em estudo de 1972, Frank Ramsey demonstrou que a elevada tributação de commodities por alíquotas idênticas e neutras traria danos à economia pela sua capacidade de reduzir a demanda por esses produtos[2]. Esse “encargo excessivo” também passa a fazer parte, pois, do cálculo do custo tributário.

Nesse mister, a teoria da tributação ótima mais atualizada passa a trabalhar não a partir de uma resposta única, mas do paradoxo das preocupações entre neutralidade, eficiência e equidade. A teoria tenta conduzir a um sistema de tributação que irá atingir a desejada arrecadação segundo a capacidade contributiva e a distribuição da renda com a maior eficiência econômica, porém sujeito esse sistema a um conjunto de restrições como a própria tributação indutora de comportamentos.

Trata-se de uma abordagem transdisciplinar e pragmática, em que a neutralidade busca o melhor desenho do sistema tributário sob a ótica da preservação da livre concorrência, porém nem sempre um sistema perfeito.

Fica, então, a pergunta: entre o ideal do princípio que busca eliminar distorções competitivas e a realidade legislada, o desenho final do IBS e da CBS, na sua implementação prática, atenderá à neutralidade?

Algumas características iniciais do nosso futuro IVA dual, como a referida tributação no destino, as bases de incidência mais amplas e a não cumulatividade menos picotada (esse princípio será objeto de apreciação específica posterior nessa coluna), parecem apontar nessa direção.

Contudo, não se pode deixar de notar determinados riscos, na atual proposta de regulamentação da reforma, à mais efetiva implementação do princípio. O aumento excessivo e casuístico na lista dos chamados regimes diferenciados, com descontos ou isenção dos tributos, além do potencial aumento das alíquotas de referência, pode desfigurar a uniformidade inicialmente pensada para os novos tributos. Além disso, determinadas restrições (como no caso das compras de empresas do Simples, com limitação dos créditos aos adquirentes) podem impactar as cadeias de fornecimento e com isso diminuir, em alguns casos, a competitividade de fornecedores.

A substituição tributária do ICMS é outra medida que, na extensão com que foi difundida para fins de praticidade e eficiência arrecadatória, contra a própria ideia inicial de proteger a concorrência, acabou militando em desfavor da neutralidade e que por isso deveria ser evitada na instituição dos novos tributos.

Em síntese, talvez esteja aí um paradoxo inescapável da neutralidade: um princípio que, para promover um ideal, atua sobre um real muito mais complexo, na companhia de outros princípios que também pretendem atingir a igualdade e a justiça na tributação.


Advogado e contador, doutor e mestre em Direito Tributário pela Universidade de São Paulo (USP), LL.M. em Direito Comercial Internacional (University of California), Presidente do Instituto de Gestão Empresarial de Tributos (IGET) e sócio-fundador do Charneski Advogados.


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