Imposto Seletivo: entre o discurso e a realidade arrecadatória

Até água pode sofre essa incidência, pois pode ser considerada escassa e seu uso excessivo prejudicial ao meio ambiente, escreve Marcos Cintra
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Audiência no Senado sobre os impactos da regulamentação, com foco na internet – Foto: Saulo Cruz via Agência Senado

Por Marcos Cintra

O Imposto Seletivo (IS) é um tributo proposto na EC 132 de 2023 da reforma tributária e regulamentado pelo Projeto de Lei Complementar (PLP) 68 de 2024, que possui como objetivo declarado desestimular o consumo de produtos considerados prejudiciais à saúde pública e ao meio ambiente. Entre os principais pontos do PLP 68, destacam-se: 

Pontos RelevantesDescriçãoComentários
1Estabelece a criação do Imposto Seletivo sobre produtos considerados prejudiciais à saúde e ao meio ambiente, para desestimular a demanda, incluindo tabaco, bebidas alcoólicas, veículos automotores, e bens minerais como minério de ferro.Definição ampla e imprecisa; até água pode sofre essa incidência, pois pode ser considerada escassa e seu uso excessivo prejudicial ao meio ambiente.
2Enuncia que o objetivo principal do IS é desestimular o consumo desses produtos, através da aplicação de alíquotas específicas que variam conforme a categoria do bem.As alíquotas podem variar em função do grau de prejuízo à saúde e ao meio ambiente, mas esses bens em geral são essenciais e têm demanda muito inelástica fazendo com que a quantidade demandada não seja significativamente reduzida com aumento de preços; em geral, bens essenciais são muito consumidos pelas camadas mais pobres da população.
3Define que os recursos arrecadados pelo IS serão destinados prioritariamente a programas de saúde pública e sustentabilidade ambiental, embora a execução e a transparência desses fundos levantem debates.Muitas dúvidas se o objetivo do IS não é em realidade o de arrecadar para garantir perda de receita com IPI e outros impostos.
4Determina a exclusão do IS da base de cálculo de outros tributos como ICMS e ISS, que serão extintos até o final de 2032.Não haverá desoneração do IS nas exportações, rompendo a não cumulatividade plena do novo modelo tributário.
5Prevê penalidades rigorosas para a sonegação fiscal e o contrabando de produtos sujeitos ao IS, destacando a importância da fiscalização eficiente.Exigirá gastos para coibir o contrabando de bens tributados pelo IS como tem sido observado nos casos de cigarros e bebidas.
6Inclui a permissão para alteração das alíquotas por decreto presidencial, desde que obedeçam ao limite máximo estabelecido pela lei.Instabilidade e insegurança jurídica e econômica; alterações de alíquotas não serão apreciadas pelo Congresso.

A regulamentação do PLP 68 busca traçar um caminho claro para a implementação do IS, embora a eficácia do tributo em desestimular verdadeiramente o consumo de bens prejudiciais seja motivo de debate.  Além dos bens tradicionalmente considerados nocivos, como cigarros, bebidas alcoólicas, e alimentos super industrializados, o IS também abrange atividades econômicas vitais como a mineração e sua exportação. A produção de minério de ferro no Brasil representa 20% das exportações totais do país, e com sua exportação, contribui com 10% do PIB brasileiro.

 Esta inclusão provoca questionamentos significativos sobre a real intenção por trás do imposto, levando muitos a acreditar que seu caráter é essencialmente arrecadatório.

De acordo com o PLP 68 de 2024, a legislação estabelece alíquotas variáveis para cada categoria de produto, baseada na sua suposta nocividade. Essa variação de alíquotas é justificada como forma de desestimular o consumo desses bens. Entretanto, os bens alvos do IS são em geral essenciais e, portanto inelásticos.

A demanda inelástica se refere a bens cuja quantidade demandada não varia significativamente com mudanças no preço. Em outras palavras, mesmo que o preço desses bens aumente devido a impostos, os consumidores continuarão a comprá-los em quantidades semelhantes. Isso ocorre porque esses bens são considerados essenciais ou não possuem substitutos próximos, tornando difícil para os consumidores reduzirem seu consumo.  Mesmo com a aplicação de impostos mais elevados, a necessidade de consumo desses bens permanece alta, e pode resultar em  aumento de arrecadação, elevação de custos de produção e perda de  competitividade no mercado internacional.

Portanto, ao tributar bens de demanda inelástica, o governo pode acabar arrecadando mais receitas sem alcançar o objetivo de reduzir o consumo desses bens. Isso levanta a questão de se o verdadeiro objetivo do Imposto Seletivo é arrecadatório, disfarçado de uma preocupação com a saúde pública e o meio ambiente. A eficácia de tais impostos em desestimular o consumo de bens essenciais e inelásticos é limitada, e pode resultar em consequências econômicas adversas, como o aumento dos custos de produção, impactos regressivos no consumo e perda de exportações.

É importante lembrar que o conceito de impor penalidades financeiras sobre determinados produtos para promover melhorias sociais não é novo. Governos ao redor do mundo têm utilizado essas estratégias por décadas. No entanto, a eficácia desse método é questionável. Alcançamos realmente a redução no consumo esperada? As evidências empíricas não confirmam essa expectativa de maneira inequívoca.

A  tributação de bens açucarados na Suécia, por exemplo,  teve impactos tanto positivos quanto negativos. Reduziu o consumo de açúcar e incentivou a reformulação de produtos, mas também levantou questões sobre a equidade da medida e a verdadeira motivação por trás da política. A experiência sueca pode servir como um estudo de caso para outros países considerando a implementação de impostos semelhantes, mas vale acrescentar que o imposto foi abolido em 1995.

O IS pode alcançar também a mineração, um dos alicerces econômicos do Brasil, contribuindo significativamente para a balança comercial e o PIB. A cobrança de um imposto seletivo sobre a extração mineral, mesmo que a alíquota máxima seja limitada a 1%, conforme estabelecido pela regra constitucional, ainda assim representa um custo adicional. Este encargo pode reduzir a atratividade do Brasil como fornecedor global de minérios, especialmente com concorrentes que não enfrentam imposições semelhantes. 

Em suma, ao analisar criticamente o Imposto Seletivo (IS), fica evidente que sua verdadeira natureza tem um forte componente arrecadatório. Embora seja vendido como um mecanismo de desestímulo ao consumo de bens prejudiciais à saúde e ao meio ambiente, sua aplicação extensa, abrangendo até mesmo setores vitais como a mineração, revela outras intenções. Além disso, a inclusão de atividades essenciais na pauta de exportação brasileira sob este regime de tributação pode enfraquecer a produção interna e desincentivar investimentos. Considerando esses pontos, emerge a necessidade de um debate mais aprofundado sobre a verdadeira função e as consequências desta medida tributária, antes de darmos um perigoso salto no escuro.


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Marcos Cintra é doutor em economia pela Harvard University (EUA) e professor-titular e vice-presidente da FGV (Fundação Getulio Vargas). Foi secretário especial da Receita Federal.


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