Distribuição desproporcional dos lucros e a hipótese de incidência tributária do ITCMD

Texto da regulamentação da reforma tributária amplia o escopo de cobrança do Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação, escreve Daniel Piga Vagetti
Dividendo dinheiro
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No âmbito da regulamentação da Emenda Constitucional nº 132/23 (EC132), o inc. I do par. 5º do art. 160 do Projeto de Lei Complementar nº 108/24 (PLP 108) dispõe que serão consideradas doações, para fins de incidência do ITCMD (imposto sobre transmissão causa mortis e doação de quaisquer bens ou direitos), os atos societários que resultem em benefícios desproporcionais para sócio ou acionista praticados por liberalidade e sem justificativa negocial passível de comprovação, incluindo distribuição desproporcional de dividendos, cisão desproporcional e aumento ou redução de capital a preços diferenciados.

Vejamos, a competência tributária atribuída pelo inc. I do art. 155 da CF88 aos Estados e ao Distrito Federal se refere a duas situações distintas, quais sejam:

  1. causa mortis (considerando que em operações intervivos a competência para a instituição de tributo é dos Municípios); e
  2. doação.

Ou seja, a hipótese de incidência tributária do ITCMD se concretiza com a transmissão por morte ou por doação de quaisquer bens e direitos (vide art. 35 do Código Tributário Nacional (CTN)).

Nesse contexto, é importante destacar que essa incidência sobre a distribuição desproporcional de dividendos como se doação fosse, constante no PLP108, ocorrerá desde que:

  1. tenha sido realizada por liberalidade; e
  2. sem justificativa negocial passível de comprovação.

Prevista no art. 538 do Código Civil (CC02), a doação é um instituto em que uma pessoa, por liberalidade, transfere do seu patrimônio bens ou vantagens para o de outra, que os aceita.

A partir deste conteúdo, temos que o art. 110 do CTN estabelece que a lei tributária não poderá alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela CF88, pelas Constituições dos Estados, ou pelas Leis Orgânicas do Distrito Federal ou dos Municípios, para definir ou limitar competências tributárias.

Isso significa que, em se tratando de doação, a hipótese de incidência tributária do ITCMD, deverá se restringir ao ajuste de vontade entre partes em que uma pessoa, por liberalidade, transfere do seu patrimônio, bens ou vantagens para o de outra, que os aceita.

Ora, é evidente que essa não é a circunstância verificada quando da distribuição desproporcional de dividendos. Referida situação pode ser motivada por vários fatores. A título de exemplo cabe mencionar a remuneração desproporcional do sócio de acordo com seu engajamento na sociedade ou na participação de faturamento (sócios focados em áreas administrativas e sócios focados em áreas comerciais).

Nessa direção, o próprio art. 1.007 do CC02 elenca que salvo estipulação em contrário, o sócio participa dos lucros e das perdas, na proporção das respectivas quotas, mas aquele, cuja contribuição consiste em serviços, somente participa dos lucros na proporção da média do valor das quotas. Ou seja, ainda que presente uma justificativa negocial (e essa comumente o está), o instituto de direito privado que trata sobre o tema não exige referida demonstração. A disposição salvo estipulação em contrário demonstra a autonomia privada acerca da deliberação da distribuição desproporcional de dividendos.

Por fim, diferentemente do que ocorre em uma doação em que se verifica a efetiva transferência do patrimônio, a deliberação sobre dividendos, ainda que de maneira desproporcional, diz respeito ao lucro (não se tem uma transferência de patrimônio), que nos termos do item 8.4 do CPC 00 – Estrutura Conceitual para Relatório Financeiro se refere ao valor residual que permanece após as despesas (incluindo ajustes para manutenção de capital, quando apropriado) terem sido deduzidas da receita.

Mais uma vez, assim como se verifica em outros pontos regulamentares da Reforma Tributária, temos que os seus princípios norteadores, ao menos do ponto de vista do contribuinte, não estão sendo observados em sua integralidade.


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Daniel Piga Vagetti É coordenador Tributário na Ourofino Saúde Animal. Advogado e contador atuante no consultivo tributário (especialista em Direito Tributário pelo IBET e mestre em Direito Tributário pela FGV-SP) com mais de 10 anos de experiência.


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