Por Márcio Costa
A criação do Comitê Gestor do IBS (Imposto sobre Bens e Serviços), prevista no Projeto de Lei Complementar (PLP) 108/2024, foi recepcionada com elogios e críticas. Os especialistas ouvidos na Comissão de Assuntos Econômicos (CAE) em audiências públicas que antecederam as audiências que estão ocorrendo na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), fomentaram estas percepções.
Dentre algumas críticas consideradas pelos diversos debatedores que ali estiveram presentes, saliento o poder exagerado pela concentração de atribuições que ficaram a seu cargo. Sim, senhores e senhoras, o PLP 108/2024, ao instituir o Comitê Gestor do IBS, instituiu um verdadeiro “Ente Federativo”, disfarçado, pois este Comitê nada mais nada menos, irá se encarregar com atribuições amplas e que não se restringe a definir as diretrizes do novo imposto, onde irá regular de forma uniforme a interpretação e a aplicação da legislação do IBS e da CBS, mas também com outras atribuições típica de uma verdadeira unidade política intrínseca de um sistema federativo.
O CG-IBS, além de definir diretrizes do IBS, exercerá a coordenação da atuação integrada das administrações tributárias e das procuradorias dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios; Atuará na arrecadação do imposto, nas compensações, e na distribuição dos recursos aos Estados, Distrito Federal e Municípios; Decidirá o contencioso administrativo; Além de atuar junto ao Poder Executivo da União para harmonizar as regras comuns aplicáveis ao IBS e à Contribuição sobre Bens e Serviços – CBS.
Certo da importância e criação do Comitê Gestor, neste artigo irei me ater ao que vejo como uma das maiores preocupações, quer seja a eventual interferência do CG em regular e harmonizar atos típicos do processo administrativo tributário, mas que Oxalá nos reserve e lance luzes para os nossos Congressistas, para que façam ajustes importantes do PLP nº 108/2024, assim estreitando a margem de discricionariedade e conveniência do Comitê.
Mas antes de adentrar no ponto nevrálgico e que instigou a reflexão deste artigo, necessário fazer uma pequena contextualização do título, no que se refere ao termo “jurisdicional”, contrariando aos que entendem que a atividade de julgamento administrativo é uma mera forma de autocontrole e revisão dos atos da Administração, preferi prestigiar aos que seguem e admitem que a Administração Pública exerça sim a função jurisdicional, com um olhar crítico de que os julgadores administrativos podem resolver litígios, exercendo o devido controle da legalidade dos atos administrativos, o que inclusive, em certa medida, auxilia e contribui com o poder judiciário.
O introito não é mero debate acadêmico, mas de certo irá ajudar a compreender os reflexos, impactos e interferências dos PLPs 68 e 108 que regulam a Emenda Constitucional nº 132/2023. Sim, isso mesmo: olha o que dispõe os Arts. 322 do PLP 68, em conjunto com o § 3º do Art. 91 do PLP 108:
Art. 322. Ato conjunto do Comitê de Harmonização das Administrações Tributárias e do Fórum de Harmonização Jurídica das Procuradorias deverá ser observado, a partir de sua publicação no Diário Oficial da União, nos atos administrativos, normativos e decisórios praticados pelas administrações tributárias da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios e nos atos da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional e das Procuradorias dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.
Parágrafo único. Compete ao Comitê de Harmonização das Administrações Tributárias e ao Fórum de Harmonização Jurídica das Procuradorias, no âmbito das suas respectivas competências, propor o ato conjunto de que trata o caput.
Art. 91. No âmbito do processo administrativo tributário, serão observados, desde que ausentes fundamentos relevantes para distinção ou superação:
(…)
§ 3º Ressalvado o disposto neste artigo, fica vedado às autoridades julgadoras, no âmbito do processo administrativo tributário, afastar a aplicação ou deixar de observar a legislação tributária sob o fundamento de inconstitucionalidade ou ilegalidade.
Da leitura dos dispostos legais propostos, fácil concluir que os atos promulgados pelo Comitê Gestor deverão ser observados por toda a administração pública, incluindo os tribunais administrativos.
A título de ilustrar as circunstâncias que rodeiam esses dispositivos, com o grau de preocupação natural de quem milita no contencioso administrativo fiscal, cabe dizer que hoje no âmbito federal, por exemplo, a empresa recebe o Auto de Infração – AI e se não concordar com os seus termos, apresenta uma impugnação, que é apreciada pela DRJ – Delegacia Regional de Julgamento, certo de que nesta esfera os julgadores são vinculados aos atos publicados pela RFB.
Entretanto, olhando para o Regimento Interno do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais – CARF, os julgadores não são obrigados a seguir os Atos Administrativos, ou seja, os Julgadores-Conselheiros têm a prerrogativa de afastá-los por conta de ilegalidades.
Portanto, essa vinculação causa um certo pavor, pois conforme proposto no texto do PLP, o CARF quando for julgar a CBS, não poderá mais fazer uso de sua prerrogativa, qual seja, o controle da legalidade, ensejando um verdadeiro convite a judicialização, o que vai na contramão de princípios e pilares estabelecidos para a reforma tributária.
Nesse passo merece destaque ainda o Art. 53 da Lei nº 9.784/99 (Regula o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal), que estabelece que a Administração deve anular seus próprios atos, quando eivados de vício de legalidade, de modo que o controle da legalidade dos atos administrativos é característica fundamental e razão de ser de qualquer processo administrativo.
De igual modo, o artigo 56 da Lei nº 9.784/99, que dispõe, que das decisões administrativas cabe recurso, em face de razões de legalidade e de mérito, tornando extremamente ineficiente o processo administrativo tributário enquanto meio de solução de controvérsias tributárias.
No prestigiado processo administrativo fiscal – PAF, ao estabelecer o Art. 26-A do Decreto nº 70.235/72 (Dispõe sobre o processo administrativo fiscal, e dá outras providências) determinou que: “no âmbito do processo administrativo fiscal, fica vedado aos órgãos de julgamento afastar a aplicação ou deixar de observar tratado, acordo internacional, lei ou decreto, sob fundamento de inconstitucionalidade”.
Dessa maneira, inclusive dispõe a Súmula Carf nº 2 no sentido de que: “o Carf não é competente para se pronunciar sobre a inconstitucionalidade de lei tributária”. Contudo, é de conhecimento notório que o órgão é competente para revisar e fazer o controle da legalidade dos atos administrativos, o que auxilia e em certa medida contribui com o poder judiciário, sobretudo no que tange ao esvaziamento da quantidade de processos.
Diante de todo o exposto, necessária as atenções para o § 3º do Art. 91 do PLP 108/2024, pois a redação de tal dispositivo há de ser alterada, para que seja especificada que tal vedação somente alcance o fundamento de inconstitucionalidade, de certa forma retirando o livre arbítrio dos julgadores em se pronunciarem sob a ilegalidade dos atos administrativos promulgados de forma contraditórias ao que se abstrai das normas de regências, o que torna menos útil o processo administrativo fiscal, desprestigiando a sua função jurisdicional e a preservação do livre convencimento motivado do julgador.
Não se pode dizer que estamos diante de um fato isolado no texto do PLP nº 108/2024, para sobressaltar a interferência no processo administrativo fiscal, no qual aqui faço a comparação com o Regimento Interno do CARF – RICARF, vejamos o que dispõe o
Art. 83. O contencioso administrativo tributário instaura-se pelo ato de impugnação em face do crédito tributário formalizado por meio de lançamento de ofício.
(…)
§ 4º A autoridade lançadora poderá alterar o lançamento efetuado, no todo ou em parte, em face de impugnação apresentada, diante de vício sanável do ato de lançamento de ofício ou de necessidade de sua reformulação.
Hoje, não causa estranheza no CARF, se cancelar um AI por vícios sem motivações, porém no âmbito dos Tribunais Administrativos do IBS a autoridade poderá rever se tiver vício a ser sanado.
Ora, não irá mais se cancelar Auto de Infração?
Será o CG que irá regulamentar, ou melhor dizendo, harmonizar o conceito de “vício sanável”?
Diante essas peculiaridades pinçadas do texto proposto no PLP nº 108/2024, não é exagero as preocupações acerca das competências do CG, essencialmente se o texto como proposto, for aprovado na íntegra como destacado nos artigos mencionados.
Ainda que não tivéssemos que superar essas “cascas de banana” no caminho interpretativo das normas regulamentares, entendo ser exagerado a delegação de competência para o CG quanto a decidir sobre regras do PAF e do Contencioso no IBS e na CBS, atribuição que fecha todo o ciclo discricionário de reunidas competências desta nova instituição governamental no país.
Márcio Robson Costa é Mestre em Ciências Contábeis pela Fucape Business School, Contador — Ex Conselheiro e Vice-Presidente de Turma no CARF — Consultor Tributário. Especialista em Direito e Planejamento Tributário, dentre outras disciplinas que cursou em Pós-Graduação/MBA: Gestão Estratégica de Empresas, Finanças e Gestão Coorporativa e Controladoria e Auditoria. Professor convidado na Pós-Graduação na Mackenzie/RJ. Professor do CRC-RJ. Membro da Comissão de Assuntos Tributários do CRC-RJ e Ex Pesquisador do Grupo de Tributação do Consumo do Núcleo de Pesquisas do Mestrado (NUPEM) – IBDT (Instituto Brasileiro de Direito Tributário).
Os artigos escritos pelos “colunistas” não refletem necessariamente a opinião do Portal da Reforma Tributária. Os textos visam promover o debate sobre temas relevantes para o país.