Breve análise da não cumulatividade no contexto da reforma tributária

Daniel Piga Vagetti comenta não cumulatividade, direito ao crédito e regras de compensação na reforma do consumo.

Por Daniel Piga Vagetti

1. Comentários iniciais

O inc. I do par. 1º do art. 156-A da Constituição Federal de 1988, combinado com o par. 16º do art. 195 da CF88, incluídos pela Emenda Constitucional nº 132/23, estabelecem que o IBS e a CBS serão não cumulativos, compensando-se o tributo devido pelo contribuinte com o montante cobrado sobre todas as operações nas quais seja adquirente de bem material ou imaterial, inclusive direito, ou de serviço, excetuadas exclusivamente as consideradas de uso ou consumo pessoal especificadas em lei complementar e as hipóteses previstas nesta Constituição.

Contudo, o inc. II do par. 5º do art. 156-A da CF88 coloca que a Lei Complementar disporá, entre outros temas, sobre o regime de compensação, podendo estabelecer hipóteses em que o aproveitamento do crédito ficará condicionado à verificação do efetivo recolhimento do tributo incidente sobre a operação com bens materiais ou imateriais, inclusive direitos, ou com serviços, desde que: (i) o adquirente possa efetuar o recolhimento do imposto incidente nas suas aquisições de bens ou serviços (split payment manual); ou (ii) o recolhimento do imposto ocorra na liquidação financeira da operação (split payment automático).

Não se ignora o fato de que a não cumulatividade no atual modelo de tributação sobre o consumo brasileiro, a despeito de em momento anterior à reforma tributária já encontrar guarida no texto constitucional, foi frustrado por diversas questões, como por exemplo a discussão sobre o conceito de insumo para o PIS e a Cofins ou as diversas prorrogações e restrições quanto aos créditos de ICMS.

Nesse contexto, amparado pelas atuais disposições constitucionais, o art. 28 do projeto de lei complementar nº 68/24 trouxe como regra geral que a apropriação dos créditos do IBS e da CBS poderá ser realizada quando do pagamento dos referidos tributos. A exceção está prevista no art. 29 do PLP68, ao elencar que os créditos poderão ser apropriados mediante o destaque dos valores dos débitos do IBS e da CBS no documento fiscal de aquisição dos respectivos bens e serviços, dispensada a exigência de pagamento desses débitos, exclusivamente, na hipótese de não ter sido implementada as modalidades de pagamento dos débitos via split payment ou pagamento pelo adquirente.

Ou seja, a exceção prevista no texto constitucional está sendo tratada como regra geral na legislação infraconstitucional. Referida exceção ao aproveitamento dos créditos, se trata (ou deveria tratar) de uma situação excepcional, aplicada a determinados contribuintes e a operações muito específicas, sob pena de esvaziar todo o racional aplicado na construção do IBS e da CSB.

Em minha leitura, a sistemática representa inequívoco retrocesso ao sistema atual de apuração de créditos. Ao que parece, a construção legislativa referente a restrição aos créditos teve como ponto de partida a fraude (especialmente aquelas relacionadas às chamadas “notas frias” ou “empresas noteiras”).

2. Não cumulatividade: aplicações no regime atual

Com exceção do ISS (tributo de natureza cumulativa), os demais tributos (ICMS, IPI, PIS e Cofins) que serão substituídos pelo IBS e pela CBS, possuem previsão constitucional a respeito da não cumulatividade (inclusive as contribuições sociais, em face da Emenda Constitucional nº 42/03).

Contudo, apesar de todo o arcabouço constitucional, a lógica de compensar o tributo devido com o montante das etapas anteriores, com o objetivo de se ter uma não cumulatividade plena ou uma neutralidade, do ponto de vista tributário, nas operações, nunca foi atingido plenamente.

As discussões que estão sendo traçadas no âmbito da EC 132 e do próprio PLP 68 em muito se assemelham às que ocorreram quando da implementação da sistemática às contribuições do PIS e da Cofins, as quais discorro com mais detalha abaixo.

Em um primeiro momento, foi implementado o PIS, originalmente instituído pela Lei Complementar nº 7/70, tendo em vista a competência residual da União e decorrente da necessária regulamentação infraconstitucional do inc. V do art. 165 da Constituição Federal de 1967 (com redação dada pela Emenda Constitucional nº 1/69), como fundo de participação que possuía a finalidade de promover a integração do empregado na vida e no desenvolvimento das empresas, mediante a cobrança de duas parcelas sobre: (i) a dedução do imposto devido sobre a renda; e (ii) o faturamento da empresa.

Ato subsequente, após a declaração de inconstitucionalidade dos decretos-lei nº 2.445/88 e nº 2.449/88, que tratavam da incidência do PIS sobre a receita operacional bruta das pessoas jurídicas de direito privado, deu-se a promulgação da CF88, que recepcionou referido programa como contribuição à seguridade social, ao lhe destinar para o financiamento do seguro-desemprego e do abono salarial, nos termos do seu art. 239, e, por consequência, submetendo-a ao regramento do art. 195 daquele diploma constitucional.

Desse modo, o PIS acabou sendo abarcado pelo conceito de seguridade social previsto no art. 194 da CF88, uma vez que assegura os direitos relativos à previdência, e, portanto, vinculado às regras e às disposições descritas no referido art. 195 do texto constitucional.

De maneira posterior, com base nas disposições do inc. I do art. 195 da CF88, a Lei Complementar nº 70/91 instituiu a Cofins, com incidência sobre o faturamento mensal das pessoas jurídicas, que abarcava a receita bruta das vendas de mercadorias e serviços prestados pelo contribuinte.

A despeito da discussão quanto à inconstitucionalidade do alargamento das bases de cálculo dos referidos tributos, a Lei nº 9.718/98 regulamentou de forma mais específica a contribuição ao PIS e da Cofins. Em seguida, com a promulgação da Emenda Constitucional nº 20/98, houve a inclusão da “receita” como grandeza passível de tributação para fins de financiamento da seguridade social, em razão da alteração promovida no inc. I do art. 195 da CF88.

Cabe destacar que as legislações mencionadas, muito embora autorizassem a exclusão de determinados valores da base de cálculo das contribuições ao PIS e da Cofins, regulavam a incidência cumulativa dos referidos tributos sem garantir o desconto de créditos. Assim, temos que o regime cumulativo se refere à exigência das contribuições sobre as receitas da atividade, e que inexiste a possibilidade de amortização dos valores incidentes nas fases que a precedem.

O regime não cumulativo do PIS e da Cofins, conforme citado anteriormente, foi instituído no ordenamento jurídico por meio da EC 42, que introduziu o par. 12 no art. 195 da CF88. Foi, então, com a Lei nº 10.637/02, fruto da conversão da Medida Provisória nº 66/02, sob o fundamento de reestruturação na forma de cobrança das contribuições sociais incidentes sobre o faturamento, que se implementou a sistemática da não cumulatividade, iniciada para a contribuição ao PIS e que posteriormente seria estendida à Cofins (Lei nº 10.833/03).

O modelo de não cumulatividade para o PIS e a Cofins foi idealizado na perspectiva de que o tributo tivesse a sua incidência apenas sobre o valor agregado ao produto do qual resultaria a receita do contribuinte. A exposição de motivos da referida MP é bastante esclarecedora a esse respeito:

2. (…) Após a instituição da cobrança monofásica em vários setores da economia, o que se pretende, na forma desta Medida Provisória, é, gradualmente, proceder-se à introdução da cobrança em regime de valor agregado – inicialmente com o PIS/Pasep para, posteriormente, alcançar a Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins) (…). 9. A alíquota foi fixada em 1,65% e incidirá sobre as receitas auferidas pelas pessoas jurídicas, admitido o aproveitamento de créditos vinculados à aquisição de insumos, bens para revenda e bens destinados ao ativo imobilizado, ademais de, entre outras, despesas financeiras. 10. Até o final do exercício de 2003, o Poder Executivo deverá submeter, ao Congresso Nacional, proposta estendendo à COFINS o modelo adotado para o PIS/Pasep, tendo em conta a experiência construída a partir do modelo ora proposto. “grifo nosso”.

Na época das mudanças legislativas, o entendimento era de que os efeitos da referida alteração resultariam na neutralidade, que, para a ciência econômica, significa “a menor produção de efeitos por parte da tributação nas escolhas dos agentes”, especificamente no caso em análise, que pretendia com a não cumulatividade promover uma tributação mais justa em toda a cadeia, mas sem reduzir ou majorar a arrecadação com as mencionadas contribuições.

Por efeito, a majoração das alíquotas somente se justificou para equilibrar a cumulatividade até então existente na incidência das contribuições, com o fim de “neutralizar” o que se chamou de “estreitamento da base de cálculo”. Ou seja, a tributação apenas sobre aquilo que efetivamente constituiu receita ou faturamento do contribuinte, na perspectiva do regime de valor agregado. Para o professor Luís Eduardo Schoueri, a tributação sob o regime não cumulativo:

(…) implica que a cada etapa considere-se a tributação já ocorrida em transações anteriores, recolhendo-se, a cada transação, apenas o plus incidente sobre o valor acrescido, de modo que, idealmente, a carga tributária suportada pelo consumidor reflita a manifestação de capacidade contributiva que ele manifesta no ato do consumo.

Nessa direção, e é aqui que se forma o ponto de tensão entre fisco e contribuinte nesse regime, seria possível sustentar que a existência de restrições creditórias invariavelmente representaria um ônus financeiro ao contribuinte, tendo em vista que a majoração das alíquotas seria “compensada” pela sistemática da não cumulatividade. Inclusive, cabe mencionar que, quando da conversão da referida MP em lei, consta do Parecer apresentado em Plenário pelo relator, deputado Benedito Gama, que

O art. 3º é o responsável pela introdução da não cumulatividade, pois estabelece que quando pessoas jurídicas adquirirem bens e serviços de outras pessoas jurídicas domiciliadas no País, calcularão seu crédito aproveitável aplicando-se a alíquota de 1,65% sobre o montante da aquisição (…). Darão direito a crédito os bens adquiridos para revenda – exceto os sujeitos à incidência monofásica –, os bens e serviços utilizados como insumo na fabricação de produtos destinados à venda ou na prestação de serviços (e nesses casos também os combustíveis e lubrificantes, a energia elétrica consumida no estabelecimento do adquirente, os aluguéis de prédios e de máquinas e equipamentos, as despesas financeiras decorrentes de empréstimos e financiamentos, os bens incorporados ao ativo imobilizado – neste caso, sobre o valor da depreciação ou da amortização –, as edificações em imóveis de terceiros cujo custo tenha sido suportado pela empresa locatária, e os bens recebidos em devolução, que tenham integrado o faturamento do mês anterior. O saldo credor passa para o mês seguinte. “grifo nosso

Ou seja, é de se notar que a metodologia da não cumulatividade arquitetada no parecer anteriormente transcrito, combinada com a já citada exposição de motivos da MP nº 66/02, que resultou na legislação posteriormente editada, teve como objetivo o esvaziamento dos valores tributáveis, restringindo-se apenas ao que efetivamente se constitui como sua receita ou seu faturamento, ao empregar de forma bastante objetiva o direito de crédito quando da aquisição de bens e serviços de pessoas jurídicas, sem estabelecer restrição quanto às etapas anteriores.

3. Perfil da não cumulatividade na reforma tributária

Como mencionado na parte inicial do presente texto, o inc. I do par. 1º do art. 156-A da CF88, combinado com o par. 16º do art. 195 da CF88, incluídos pela EC132, estabelecem que o IBS e a CBS serão não cumulativos, compensando-se o tributo devido pelo contribuinte com o montante cobrado sobre todas as operações nas quais seja adquirente de bem material ou imaterial, inclusive direito, ou de serviço, excetuadas exclusivamente as consideradas de uso ou consumo pessoal especificadas em lei complementar e as hipóteses previstas nesta Constituição.

A redação dos dispositivos é muito semelhante ao que já existe no ordenamento jurídico. Ou seja, o reconhecimento do crédito com base na operação anterior independe da aferição do efetivo recolhimento do tributo devido naquela etapa.

Cabe mencionar ainda que a exceção ao crédito prevista no inc. II do par. 5º do art. 156-A da CF88, que trata sobre a possibilidade de a lei complementar (como o fez o PLP68), estabelecer hipóteses em que o aproveitamento do crédito ficará condicionado à verificação do efetivo recolhimento do tributo incidente sobre a operação com bens materiais ou imateriais, inclusive direitos, ou com serviços, desde que: (i) o adquirente possa efetuar o recolhimento do imposto incidente nas suas aquisições de bens ou serviços (split payment manual); ou (ii) o recolhimento do imposto ocorra na liquidação financeira da operação (split payment automático), não é verificada em outros países que adotam o IVA.

Contudo, conforme apontado pelo Professor Alexandre Alkmim Teixeira, não é novidade no direito brasileiro a exigência de antecipação do tributo para posterior restituição ao contribuinte mediante a comprovação de que o valor antecipado fora indevido ou a maior. Na doutrina, a prática é conhecida como solve et repete. Em geral, o solve et repete se refere à exigência de pagamento para que o contribuinte possa questionar a exigência tributária que lhe é feita pelo Fisco, como ocorre em casos de apreensão de mercadoria ou como condicionante da prática de atos perante a administração tributária.

É essa mesma lógica que se verifica com as disposições contidas na EC132 e no PLP68: primeiro se exige o pagamento do tributo para que somente em momento posterior o valor possa ser utilizado (é o que acontece hoje com a substituição tributária progressiva, as antecipações do IRPJ e da CSL no regime do lucro real anual, as retenções tributárias na fonte, entre outros).

A implementação e adoção da referida sistemática, a despeito de contrariar, em minha leitura, a neutralidade (um dos princípios condutores da reforma tributária), deve ter em mente o impacto no fluxo de caixa das empresas. Isso porque, especialmente no Brasil, a disponibilidade de recursos tem um custo. Nessa direção, cabe mencionar trecho do estudo publicado no Brazilian Journal of Development:

A discussão sobre retenção de caixa é um dos aspectos relevantes em finanças corporativas e tem sido o foco de diversas pesquisas acadêmicas. Um dos fatos estilizados mais comumente aceito na literatura é um crescimento do nível de caixa nas empresas abertas nos EUA durante os anos 2000, em relação a décadas anteriores (Bates et al., 2009). O motivo precaucional (evitar perder oportunidades de investimento) é o mais utilizado na explicação. Estudos de Almeida et al. (2004) e Harford et al. (2014) são consistentes com essa explicação. O primeiro verifica que as firmas mitigam os efeitos adversos da restrição financeira adotando políticas de maior retenção de caixa. Já o segundo, mostra que o nível de caixa é determinado pelo risco de refinanciamento das empresas, com o objetivo de prevenir problemas de subinvestimento. Em países emergentes o tema torna-se ainda mais relevante, uma vez que em mercados menos desenvolvidos, há tendência de maiores fricções financeiras, o que torna ainda mais difícil o acesso às fontes de financiamento, aumentando a propensão a uma restrição financeira das firmas. Não bastasse isso, o Brasil nos últimos anos tem apresentado histórico de recessões econômicas com reflexos diretamente nas finanças corporativas e, de modo particular, na liquidez das empresas. De acordo com o Comitê de Datação de Ciclos Econômicos (Codace), da Fundação Getúlio Vargas, desde 1980 o Brasil passou por nove períodos de recessão econômica, sendo o último e mais severo, entre 2014 e 2016.

Destaca-se mais uma vez que a partir da experiência internacional, devemos ter atenção aos impactos que o split payment poderá provocar no fluxo de caixa das empresas, com efeitos diretos na saúde econômica destas.

Na mesma direção são as lições da professora Mary Elbe Queiroz e do professor Antonio Carlos de Souza Junior, ao chamarem a atenção para o fato de que mesmo com evidentes benefícios em relação ao combate as fraudes, os reflexos do split payment e desse modelo de não cumulatividade poderão trazer impactos prejudiciais maiores do que os supostos benefícios.

Sendo assim, com base no exposto, me parece que a exceção prevista no texto constitucional, que está sendo tratada como regra geral na legislação infraconstitucional, deve (ou deveria) ser aplicada apenas em situações excepcionais, a determinados contribuintes ou segmentos, e em operações muito específicas, sob pena de esvaziar todo o racional aplicado na construção do IBS e da CSB, e dos próprios princípios constitucionais que nortearam (e estão norteando) a reforma tributária.


Daniel Piga Vagetti é coordenador Tributário na Ourofino Saúde Animal. Advogado e contador atuante no consultivo tributário (especialista em Direito Tributário pelo IBET e mestre em Direito Tributário pela FGV-SP) com mais de 10 anos de experiência.


Esse artigo foi publicado com exclusividade na Revista da Reforma Tributária. Acesse a edição completa aqui (é gratuito).