Por Ariane Guimarães
A reforma trouxe novas previsões de responsabilidade de terceiros pelo recolhimento de IBS e CBS, ou seja, novos sujeitos, que não praticarão o fato gerador, passam a ser devedores das exações.
Atualmente, a responsabilidade tributária pelo pagamento de tributos pode recair sobre terceiros, desde que estejam previstos em lei e haja elemento de conexão juridicamente qualificado entre o terceiro e o contribuinte (art. 128 do CTN – a lei pode atribuir de modo expresso a responsabilidade pelo crédito tributário a terceira pessoa, vinculada ao fato gerador da respectiva obrigação).
De acordo com o art. 24 do PLP 68/2024, será corresponsável pelo recolhimento de IBS e CBS a pessoa que, a qualquer título, adquirir, importar, receber, der entrada ou saída ou mantiver em depósito bem, ou tomar serviço, não acobertado por documento fiscal idôneo.
A preocupação não é nova, ao menos não para as autoridades administrativas, que, a partir da suposta violação do dever de diligência do adquirente na verificação da higidez dos documentos fiscais, estornam créditos escriturais decorrentes de aquisições de bens desacompanhados de notas fiscais idôneas. Isso mesmo sem a demonstração de qualquer evidência de participação do adquirente na irregularidade.
Em tais casos, o Judiciário resguarda o direito ao aproveitamento do crédito de ICMS, afastando, portanto, qualquer responsabilidade do adquirente quanto ao ônus da higidez dos documentos para resguardar o seu direito ao exercício da não cumulatividade, principalmente quando as notas fiscais emitidas pela vendedora tenham sido declaradas inidôneas posteriormente à aquisição.
O alcance proposto pela redação do art. 24 ainda não está claro. Um fato é certo: tornar o adquirente imediatamente responsável pelo tributo incidente sobre bem sem a respectiva e hígida nota fiscal, não apenas lhe retirando o direito à apropriação do crédito, mas o tornando corresponsável, é um passo largo na atribuição de dever de recolhimento a terceiros e que transpassa o espectro da vinculação ao fato gerador. É que o adquirente não tem ascendência sobre os elementos do fato gerador da operação, sendo apenas o que compra o bem.
O PLP 68/2024 também estabelece que o transportador será corresponsável por IBS e CBS incidentes sobre bens desacobertados de documento fiscal idôneo.
Neste particular, o Poder Judiciário já enfrentou circunstância assemelhada e a consequência jurídica de imposição de multa aos transportadores (que é distinta tecnicamente da proposta do PLP 68/2024) tem sido tida como adequada.
Em caso específico de aplicação da penalidade imposta a transportador de mercadorias de terceiros cujas notas fiscais não haviam sido expedidas nos termos da legislação, no caso o art. 188 do RICMS/SP, houve manutenção das multas por não haver qualquer demonstração de equívoco na presunção estabelecida na autuação perpetrada pela autoridade administrativa fiscal.
Há, igualmente, introdução de responsabilidade tributária imposta ao leiloeiro, em relação a IBS e CBS incidentes sobre operações realizadas em leilão.
O Regulamento do ICMS do Estado do Rio de Janeiro, por exemplo, já atribui ao leiloeiro a responsabilidade pelo recolhimento do ICMS incidente sobre a saída de mercadorias ou bens arrematados.
Da mesma forma, o PLP 68/2024 estabelece que os desenvolvedores ou fornecedores de programas ou aplicativos utilizados para registro de operações com bens ou com serviços que contenham instrumentos que permitam a utilização em desacordo com a legislação tributária.
Atualmente, por exemplo, o Estado de Mato Grosso estabelece esta responsabilização, justificada no dever de colaboração e de fiscalização imposto, não havendo discussões expressivas sobre esta disciplina normativa.
A falta de diligência, portanto, está sendo considerada para atribuição de responsabilidade tributária a diversos novos sujeitos, sem que haja a vinculação de tais figuras com o fato gerador de IBS e CBS, ou seja, com as operações com os bens e com os serviços. E essa vinculação precisa estar demonstrada com a detenção de todas as informações, por parte do responsável, relacionadas aos aspectos do fato gerador, tais como a materialidade, o local e o tempo em que praticado o fato, bem como à grandeza sobre a qual o tributo incidirá. Não havendo este domínio do fato, não há substrato legítimo suficiente para a justificação da responsabilidade.
Por fim, o PLP 68/2024 estabelece a responsabilidade de plataforma digital pelo IBS e CBS devidos sobre produtos ou serviços comercializados sob a sua intermediação e, ainda, define quais são as ações intermediadas que poderão gerar essa responsabilidade, a saber, de cobrança, pagamento, definição dos termos e condições ou a entrega. A influência para esta disciplina é internacional e se trata de diretriz adotada em diversos países da OCDE.
É cediço que a responsabilidade tributária tem como pano de fundo o dever fundamental de cooperação com a Administração Pública, exigindo que “o sujeito chamado a colaborar detenha posição fática de ascendência relativamente ao fato tributável e/ou contribuinte” (UHDRE, Dayana. Sujeição passiva das plataformas digitais no âmbito da Reforma Tributária). Também é de ser lembrado que a praticabilidade tributária, enquanto vetor mirado no estabelecimento de dinâmicas fiscais, admite que terceiros sejam chamados ao cumprimento de deveres para auxiliar as tarefas de arrecadação e fiscalização.
E esse dever de cooperação fiscal deve interagir com a razoabilidade e a proporcionalidade. É dizer: a praticabilidade tributária, a qual permite ao ente público exigir de terceiros o cumprimento de obrigações tributárias em prol de uma eficiência na arrecadação fiscal, deve ser ponderada com os limites que estes mesmos terceiros gozam enquanto titulares de direitos de cumprirem com obrigações razoáveis e proporcionais.
E não é só. A articulação teórica mais recente sobre limites a serem impostos pelo Fisco quanto aos deveres instrumentais e à responsabilização de terceiros pelos tributos também invoca a capacidade contributiva como demarcação de tais obrigações.
Assim com relação às novas hipóteses de responsabilização, algumas questões devem ser realizadas para a confirmação da sua legitimidade material: (i) o terceiro tem acesso a informações suficientes e precisas para realizar o recolhimento de IBS e CBS em relação às operações pelas quais passam a ser responsáveis? (ii) há meios para exigir IBS e CBS relativos ao fornecimento do produto ou do serviço?
Não sendo afirmativa a resposta a ambas as questões, a responsabilidade tributária é ilegítima.
De outro lado, a pertinência de se estabelecer novas hipóteses de responsabilização tributária na lei complementar que institui IBS e CBS pode ser questionada na perspectiva formal, por estabelecer regras específicas de sujeição passiva específicas, ou seja, que não sejam uniformes para todos os tributos.
Humberto Ávila indica a irregularidade da disciplina específica de responsabilidade tributária no PLP 68/2024 apenas para IBS e CBS, partindo do pressuposto de que a Constituição Federal autorizou apenas a instituição de maneira específica no caso de realização, execução ou pagamento da operação: “não sendo esse o caso, isto é, não sendo o caso de a própria Constituição autorizar a lei complementar a estabelecer norma não uniforme sobre sujeição passiva, a lei complementar que discrepar das normas gerais estabelecidas será inconstitucional e ilegal” (Limites constitucionais à instituição do IBS e da CBS).
Ou seja, a praticabilidade mirada pelos reformistas, em muito, poderá facilitar, de um lado, a arrecadação tributária, inclusive por intermédio da responsabilidade tributária agora extensível a mais sujeitos, como adquirentes, plataformas, leiloeiro, por exemplo. No entanto, algumas das novas responsabilizações poderão também ser questionadas juridicamente, na perspectiva legal e constitucional.
Esse artigo foi publicado com exclusividade na Revista da Reforma Tributária. Acesse a edição completa aqui (é gratuito).