A tributação deve impactar minimamente (não completamente) o preço final dos produtos e serviços no mercado, escreve Ariane Guimarães
Uma das âncoras da reforma tributária é o compromisso de concretização da não cumulatividade. O princípio da não cumulatividade não foi observado integralmente em nossa história constitucional desde 1988 porque uma série de situações e entraves normativos impedem o afastamento do resíduo tributário na tributação sobre o consumo, o que vai desde o acúmulo de saldos credores até a restrição ao aproveitamento de diversos créditos.
E é por essa razão que o IBS e a CBS se apresentam: “O IBS busca unicamente prover arrecadação tributária sólida e estável com o mínimo de distorções para o setor produtivo, pois o custo dessas distorções recairia em última análise sobre os cidadãos consumidores”, justificam os congressistas .
Como instrumento normativo adicional a reforçar a não cumulatividade, a EC 132/23 estatui expressamente o princípio da neutralidade como orientador do IBS, nos seguintes termos:
- “Art. 156-A … § 1º O imposto previsto no caput será informado pelo princípio da neutralidade e atenderá …”.
A neutralidade fiscal tem como objetivo impedir que os impostos sobre o consumo veiculem externalidades nos elementos da livre concorrência. Assim, a neutralidade impede vedações aos créditos dos tributos incidentes na cadeia, ao mesmo tempo em que serve como limite à concessão de benefícios fiscais.
O IVA europeu, inclusive, prescreve a neutralidade como a matriz orientativa do tributo:
- “Resultar na neutralidade na competição, de forma que em cada país mercadorias similares tivessem a mesma carga tributária, qualquer que fosse a duração da cadeia de produção e distribuição, e de maneira que no comércio internacional o montante da tributação sobre bens seja conhecida e que uma exata equalização daquele montante possa ser assegurada” (ROLIM, João Dacio, Não-cumulatividade (valor agregado?). In MACHADO, Hugo de Britto. Não-cumulatividade tributária. São Paulo: Dialética, 2009, p. 257.)
O princípio da neutralidade da tributação, portanto, é definido como o dever dirigido ao Estado consubstanciado no impedimento de que tanto a imposição fiscal como a exoneração tributária causem desequilíbrios na concorrência.
Em outras palavras, a tributação, ou a sua ausência, deve impactar minimamente (não completamente) o preço final dos produtos e serviços no mercado, bem como o comportamento dos agentes econômicos.
Isso não significa dizer, por outro lado, que todos os créditos devam ser garantidos na atividade econômica, tampouco que nenhum benefício fiscal possa ser concedido. Ao contrário, a limitação à apropriação de determinados créditos, muitas vezes, pode se justificar porque o ator econômico cuja vedação se impõe se configura como consumidor do bem ou do serviço. De outro lado, o benefício fiscal pode ser um instrumento para equalização de uma outra externalidade vislumbrada ou para implementação de uma política pública de fomento. Serão situações previstas especificamente na legislação, acompanhadas da devida justificação.
O princípio da neutralidade da tributação, portanto, é definido como o dever dirigido ao Estado consubstanciado no impedimento de que tanto a imposição fiscal como a exoneração tributária causem desequilíbrios na concorrência”
Ariane Costa Guimarães, advogada
A neutralidade também encerra o comando de que os tributos não podem produzir efeitos econômicos que alterem as decisões dos agentes econômicos no livre exercício da sua atividade. Logo, para que a neutralidade esteja atendida, Humberto Ávila enuncia que é imprescindível que o IBS e a CBS tenham como pressuposto o exercício de uma atividade econômica. Assim, “só faz sentido um tributo ser informado pelo princípio da neutralidade se ele incidir sobre o resultado de uma atividade econômica que, com sua instituição e cobrança, poderia ser restringida”. Isso significa que só há se tratar de neutralidade quando a hipótese de incidência diga respeito a uma atividade de mercancia, não sendo o caso, por exemplo, das operações não onerosas.
A neutralidade fiscal, portanto, é nova enquanto princípio expresso na Constituição Federal, mas já estava indiretamente prevista no artigo 146-A, que assim disciplina:
- “Art. 146-A. Lei complementar poderá estabelecer critérios especiais de tributação, com o objetivo de prevenir desequilíbrios da concorrência, sem prejuízo da competência de a União, por lei, estabelecer normas de igual objetivo.”
O dispositivo foi base para decisões relevantes do Supremo Tribunal Federal (RE 550.769, Rel. Min. Joaquim Barbosa, Tribunal Pleno, DJe 3/04/2014.), como a que declarou constitucional a medida de cancelamento de registro de empresa devedora de tributos. Isso porque a situação de recorrente inadimplência de obrigações tributárias principais, em montante capaz de desequilibrar a concorrência no nicho econômico, criando vantagem competitiva ilícita, é consequência legal amparada pela juridicidade.
Agora, com a Reforma Tributária, o princípio passa a estar previsto na Constituição Federal e seu conceito sugerido no PLP 68/2024:
- “Art. 2º. O IBS e a CBS são informados pelo princípio da neutralidade, segundo o qual esses tributos devem evitar distorcer as decisões de consumo e de organização da atividade econômica.”
Isso significa que a neutralidade passará a delimitar objetivamente o poder normativo dos entes federados, impedindo que instituam regras e procedimentos tributários que onerem a atividade produtiva, deixando, por exemplo, de permitir a apropriação de créditos sobre bens e serviços adquiridos para o desenvolvimento da atividade econômica. Mas não só. Passa a ser um direito subjetivo do contribuinte que, caso se depare com impedimentos legais tributários os quais impliquem em distorção tanto no consumo como na própria atividade econômica, passa a ser um novo fundamento para demandas judiciais.
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